Resumo A obra Dom Casmurro, de Machado de Assis tem recebido grande atenção por parte da crítica. Muitos são os aspectos explorados nessa grande obra literária, entre eles, tem merecido atenção o uso que o autor faz do recurso ao dialogismo e à intertextualidade. Este artigo tem por objetivo analisar tais recursos, principalmente, no que se refere à relação deste romance com o discurso bíblico.
Palavras-Chave Intertextualidade; dialogismo; literatura.
1. A PRODUÇÃO DE TEXTOS: DA ANTIGUIDADE AOS DIAS DE HOJE Segundo Sant’Anna (2002), poetas famosos da antiguidade, como Homero e Ésquilo, fizeram da literatura o lugar da representação da vida dos homens em relação às forças da natureza, divinizadas por eles. Esses autores conseguiram pôr em ação muitos dos grandes e importantes acontecimentos que até hoje servem como alicerce para nossa literatura, e já valiam-se, sem o saber, da intertextualidade. É sabido que tais autores não se baseavam em textos escritos anteriores, pois o que havia de maravilhoso na poesia era guardado na memória daqueles que a produziram oralmente. Mais tarde, no século VII a.C., aproximadamente, é que os poetas começaram a registrar os feitos de seus heróis e deuses. Conforme Marmorare (s/data), era através dos versos que eles ensinavam a cultura da época aos cidadãos.
1 Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letrasd do Centro Universitário Ritter dos Reis – Uniritter. E-mail: dudkuks@hotmail.com
Hoje, a teoria tem enfatizado, por meio de estudos e dados reais, que grande parte da literatura existente é baseada, de alguma forma, em fatos já trabalhados anteriormente, deixados por poetas famosos. Grandes escritores da literatura universal, como Camões, buscavam inspiração em obras já existentes, isto é, utilizaram-se de um intertexto. Por isso, podemos notar que, de uma maneira ou de outra, tudo o que é escrito, seja no passado ou na atualidade, antes já foi proposto por alguém. Esse processo de apropriação de fragmentos de outros textos ou obras, nos quais os autores baseiam-se, é chamado intertextualidade, e será nosso objeto de estudo.
2. INTERTEXTUALIDADE
Segundo Koch (2000), intertextualidade são pequenos pedaços de textos já existentes, fragmentos de textos alheios, que servem como base para criação de textos novos. Por isso, podemos dizer que todo o texto, de certa forma, é um intertexto, pois remete a outros textos, formando, a partir de uma espécie de apropriação ou diálogo, algo novo.
Como o intertexto faz referência a textos já existentes, podemos dividi-lo em dois tipos: o explícito, que ocorre quando o autor apresenta a fonte do intertexto, isto é, há citação clara e visível no texto novo; e o implícito, que ocorre quando a citação não está com a fonte explícita no texto, cabendo ao leitor a tarefa de identificá-lo, relacioná-lo e interpretá-lo.
A configuração do intertexto também pode ser classificada segundo diferenças e semelhanças. Koch (2000) explica que a intertextualidade com diferenças ocorre quando o autor apropria-se do texto alheio para parodiar, ironizar, contrariar ou concordar parcialmente com o que foi dito anteriormente; já a intertextualidade com semelhanças acontece quando o autor concorda com o texto alheio e deseja apropriar-se dele para defender sua argumentação, isto é, o texto escolhido serve como orientação argumentativa.
3. DIALOGISMO
Abordar a intertextualidade significa falar, também, em dialogismo, conceito introduzido por Bakhtin(apud BRAIT, 2006). A concepção de linguagem é um dos pontos centrais do pensamento desse teórico, uma linguagem em ação, presente na enunciação, revelando sua natureza dialógica. Segundo Brait (1997) o autor, a maneira de compreender a linguagem está no social, portanto, não pode ser isolada de seu contexto. Toda enunciação precisa de um enunciador (ato ilocutório) e um ouvinte (ato perlocutório), dessa maneira sempre existe interação entre o indivíduo e os outros que o cercam, e seu discurso se relaciona com o social, apropriando-se, dialogando e respondendo a ele.
Bakhtin observa que as palavras ditas por um eu já vem circundadas por um sistema social antes sedimentado, ou seja, toda linguagem pertence a um sistema compartilhado por um indivíduo e outros que formam esse sistema. A linguagem é, então, o ponto de encontro entre, no mínimo, dois indivíduos, o eu e o outro (locutor e receptor). Assim, todo o indivíduo é essencialmente social, pois depende da linguagem e do outro para se compor.
O chamado enunciado, aquilo que se produz através do discurso, constrói-se dialogicamente, pois é necessário alguém para produzir o ato do discurso e alguém para receber. Além disso, o enunciado articula-se já prevendo a resposta do interlocutor. O teórico afirma ainda, que a experiência verbal de um indivíduo se aprimora pela convivência com os outros, ampliando, com isso, o processo de assimilação. Os enunciados, inclusive textos literários, são constituídos de palavras dos outros (intertextos).
4. BREVE ANÁLISE DO ROMANCE DOM CASMURRO
O romance Dom Casmurro (1982), de Machado de Assis, apresenta-se como um discurso ambíguo. Segundo Costa (1995), Machado de Assis trabalha o arbítrio entre o que é dito e o que acontece no relato, produzindo um discurso de equívoco e duplo sentido, altamente neutralizado, entretanto, por uma retórica persuasiva impecável, convencendo o leitor, pela dissimulação, de que tudo é como o narrador diz.
Em seu discurso, o narrador explicita exatamente o que Bakhtin aponta como dialogismo, isto é, um discurso que representa a constituição do sujeito em relação com o mundo, através de diálogos já existentes, formando os elos para um novo texto.
Na construção da narrativa romanesca, o narrador prevê qual será a reação do leitor a seu discurso e, ao dirigir-se a ele, informa aquilo que o leitor necessita saber.
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro, antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão [...]. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência [...] tive outras muitas, melhores e piores, mas aquela nunca se apagou do espírito. É o que vais entender, lendo. (ASSIS, 1982, p. 178/9)
O diálogo com o leitor, constante no texto, incorpora, numa espécie de antecipação, as reações do interlocutor imaginário. O dialogismo não se restringe a essa conversa entabulada pelo narrador, pois a enunciação incorpora discursos da tradição e gêneros discursivos já consolidados. Surge, então, a intertextualidade.
As narrativas pertencentes ao cristianismo, principalmente a bíblica, surgem como um intertexto de grande importância em Dom Casmurro, como podemos perceber na citação abaixo:
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a procedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênero essencial trágico. (ASSIS, 1982, p. 187)
Nessa passagem, Machado de Assis parodia o discurso alheio, fazendo com que o leitor reflita sobre o original. Suas palavras nos mostram uma narrativa com inversão de sentidos, pois ele utiliza-se de personagens bíblicos e reescreve, em seu texto, um diálogo totalmente novo.
Na citação, notamos a presença de personagens fundamentais da tradição cristã: Deus, Satanás, Miguel, Rafael e Gabriel. Segundo a Bíblia, Deus é um ser onipotente, onisciente e onipresente, que sabe tudo e está presente em toda parte; Satanás foi um anjo de luz, que desejou ser igual a Deus, se rebelou contra o criador sendo então expulso do céu com sua legião de anjos maus (os demônios). Miguel, Rafael e Gabriel, os três anjos mais importantes da legião de Deus, são considerados o seu braço direito. Como podemos perceber, o narrador tenta convencer o leitor de que Deus e o Diabo são semelhantes a pessoas comuns, com algumas desavenças, resolvidas com um simples pedido de desculpas.
A distorção nas informações prestadas ao leitor transforma a narrativa em algo pouco confiável, falta idoneidade nos fatos apresentados, pois eles contrariam a
tradição, abrindo um leque de interpretações. O narrador, ao apresentar tal versão da relação entre Deus e Satanás, imagina previamente a reação do leitor, a quem instiga durante toda a narrativa.
Mais adiante, no decorrer da leitura, o autor apresenta outro intertexto explícito. Podemos perceber que o discurso novamente inclina-se para as escrituras sagradas, utilizando-se de um texto alheio para compor o seu. A citação a seguir alude ao livro Cântico dos Cânticos, de Salomão, o qual narra os procedimentos que deve ter o cônjuge para com sua companheira:
[...] lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí-las daquela maneira particular, boca sobre boca. É isto, vamos, é isto... Idéia só! Idéia sem pernas! [...] muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. [...] Não me olhou de rosto [...] Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-se. Fui ter com ela [...] A boca com que respondeu era tal que cuida haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.
Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... [...] Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do cântico um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca". (ASSIS, 1982, p. 225/6)
Nessa passagem, fica claro que Machado de Assis apropriou-se de texto alheio, porém, com sentido inverso ao texto original, sua narrativa tem o objetivo de atrair a atenção do leitor no que diz respeito ao romantismo, ao conteúdo da obra como um todo e não ao texto alheio, que perde seus limites ao ser apropriado por outro enunciado, surgindo assim um novo sentido. Segundo a Bíblia, no livro de Cântico, cap. 2:4-6 lemos:
Eu sou a rosa de Saron
O lírio dos vales
Esposo
Qual o lírio entre os espinhos, tal é a minha querida entre as donzelas...
A sua mão esquerda
esteja debaixo da minha cabeça,
e direita me abrace.
Comparando a passagem acima com a do romance, nos deparamos com o intertexto das semelhanças e podemos analisá-lo de forma que o discurso torna-se uma paráfrase, isto é, o mesmo sentido com palavras diferentes. A ação de Bentinho, a maneira como beija Capitu é narrada de forma a retornar o que está escrito na Bíblia.
Quanto mais nos aproximamos do fim do romance, mais interessante fica o enredo. Fazemos toda essa "viagem" através de outras obras, com as quais Dom Casmurro dialoga, e percebemos quão importante é estarmos atentos ao intertexto. Machado não mede palavras, nem autores, nem obras, produzindo diversos efeitos no leitor. Comprovamos, mais uma vez, esse jogo intertextual, que na passagem abaixo está explícito:
Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das suas práticas religiosas, e da fé pura que as animava. [...] Minha mãe faria, se pudesse, uma troca de promessa, dando parte dos seus anos para conservarem consigo fora do clero. [...]
Como Abraão, minha mãe levou o filho ao monte da visão, e mais lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou Isac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. [...] (ASSIS, 1982, p. 277)
Numa linguagem bastante simples, o autor compara a mãe de Bentinho com Abraão, personagem bíblico de imensurável fé, que não discutia as ordens dadas pelo Senhor. Cumpridor de sua palavra leva o único filho para o sacrifício, assim como D. Glória que promete entregar o filho para servir a Deus, e enviá-lo ao seminário mesmo antes do nascimento. Mulher devota de suas obrigações cristãs não desiste de seus princípios e de sua palavra, fazendo cumprir sua promessa.
A passagem que serve de intertexto para o romance encontra-se no livro de Gênesis 22:1-3, 15-18. Nesta hora, Deus põe Abraão à prova, pois pede seu único e tão desejado filho (tendo sua esposa Raquel dado à luz, sendo ela estéril) em sacrifício. Após os preparativos, Deus envia um anjo para impedir que o pai sacrifique Isac, pois já está ciente do amor existente em Abraão pelo Senhor Deus.
A comparação produzida pela intertextualidade confere um tom específico à situação do personagem Bentinho, ao mesmo tempo que dessacraliza o discurso bíblico, colocando-o em um mesmo patamar que o discurso profano e prosaico do romance.
Podemos perceber, com base na breve análise realizada, que nesse jogo intertextual Machado de Assis, além de construir um narrador que dialoga com o leitor, produz um efeito inesperado de sentidos opostos. Segundo Costa (1995), existe uma diferença entre o real sentido do texto e o sentido que realmente ocasiona. Esses dois parâmetros divergem, sendo que o sentido criado não interfere no sentido já existente.
Toda narrativa é nova, a partir do momento em que o autor se apropria de discursos existentes para elaborar um texto que é só dele.
Fonte: http://seer.uniritter.edu.br/index.php/cenarios/article/viewFile/161/97
Por: Queli Pereira
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