Resumo A obra Dom Casmurro, de Machado de Assis tem recebido grande atenção por parte da crítica. Muitos são os aspectos explorados nessa grande obra literária, entre eles, tem merecido atenção o uso que o autor faz do recurso ao dialogismo e à intertextualidade. Este artigo tem por objetivo analisar tais recursos, principalmente, no que se refere à relação deste romance com o discurso bíblico.
Palavras-Chave Intertextualidade; dialogismo; literatura.
1. A PRODUÇÃO DE TEXTOS: DA ANTIGUIDADE AOS DIAS DE HOJE Segundo Sant’Anna (2002), poetas famosos da antiguidade, como Homero e Ésquilo, fizeram da literatura o lugar da representação da vida dos homens em relação às forças da natureza, divinizadas por eles. Esses autores conseguiram pôr em ação muitos dos grandes e importantes acontecimentos que até hoje servem como alicerce para nossa literatura, e já valiam-se, sem o saber, da intertextualidade. É sabido que tais autores não se baseavam em textos escritos anteriores, pois o que havia de maravilhoso na poesia era guardado na memória daqueles que a produziram oralmente. Mais tarde, no século VII a.C., aproximadamente, é que os poetas começaram a registrar os feitos de seus heróis e deuses. Conforme Marmorare (s/data), era através dos versos que eles ensinavam a cultura da época aos cidadãos.
1 Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letrasd do Centro Universitário Ritter dos Reis – Uniritter. E-mail: dudkuks@hotmail.com
Hoje, a teoria tem enfatizado, por meio de estudos e dados reais, que grande parte da literatura existente é baseada, de alguma forma, em fatos já trabalhados anteriormente, deixados por poetas famosos. Grandes escritores da literatura universal, como Camões, buscavam inspiração em obras já existentes, isto é, utilizaram-se de um intertexto. Por isso, podemos notar que, de uma maneira ou de outra, tudo o que é escrito, seja no passado ou na atualidade, antes já foi proposto por alguém. Esse processo de apropriação de fragmentos de outros textos ou obras, nos quais os autores baseiam-se, é chamado intertextualidade, e será nosso objeto de estudo.
2. INTERTEXTUALIDADE
Segundo Koch (2000), intertextualidade são pequenos pedaços de textos já existentes, fragmentos de textos alheios, que servem como base para criação de textos novos. Por isso, podemos dizer que todo o texto, de certa forma, é um intertexto, pois remete a outros textos, formando, a partir de uma espécie de apropriação ou diálogo, algo novo.
Como o intertexto faz referência a textos já existentes, podemos dividi-lo em dois tipos: o explícito, que ocorre quando o autor apresenta a fonte do intertexto, isto é, há citação clara e visível no texto novo; e o implícito, que ocorre quando a citação não está com a fonte explícita no texto, cabendo ao leitor a tarefa de identificá-lo, relacioná-lo e interpretá-lo.
A configuração do intertexto também pode ser classificada segundo diferenças e semelhanças. Koch (2000) explica que a intertextualidade com diferenças ocorre quando o autor apropria-se do texto alheio para parodiar, ironizar, contrariar ou concordar parcialmente com o que foi dito anteriormente; já a intertextualidade com semelhanças acontece quando o autor concorda com o texto alheio e deseja apropriar-se dele para defender sua argumentação, isto é, o texto escolhido serve como orientação argumentativa.
3. DIALOGISMO
Abordar a intertextualidade significa falar, também, em dialogismo, conceito introduzido por Bakhtin(apud BRAIT, 2006). A concepção de linguagem é um dos pontos centrais do pensamento desse teórico, uma linguagem em ação, presente na enunciação, revelando sua natureza dialógica. Segundo Brait (1997) o autor, a maneira de compreender a linguagem está no social, portanto, não pode ser isolada de seu contexto. Toda enunciação precisa de um enunciador (ato ilocutório) e um ouvinte (ato perlocutório), dessa maneira sempre existe interação entre o indivíduo e os outros que o cercam, e seu discurso se relaciona com o social, apropriando-se, dialogando e respondendo a ele.
Bakhtin observa que as palavras ditas por um eu já vem circundadas por um sistema social antes sedimentado, ou seja, toda linguagem pertence a um sistema compartilhado por um indivíduo e outros que formam esse sistema. A linguagem é, então, o ponto de encontro entre, no mínimo, dois indivíduos, o eu e o outro (locutor e receptor). Assim, todo o indivíduo é essencialmente social, pois depende da linguagem e do outro para se compor.
O chamado enunciado, aquilo que se produz através do discurso, constrói-se dialogicamente, pois é necessário alguém para produzir o ato do discurso e alguém para receber. Além disso, o enunciado articula-se já prevendo a resposta do interlocutor. O teórico afirma ainda, que a experiência verbal de um indivíduo se aprimora pela convivência com os outros, ampliando, com isso, o processo de assimilação. Os enunciados, inclusive textos literários, são constituídos de palavras dos outros (intertextos).
4. BREVE ANÁLISE DO ROMANCE DOM CASMURRO
O romance Dom Casmurro (1982), de Machado de Assis, apresenta-se como um discurso ambíguo. Segundo Costa (1995), Machado de Assis trabalha o arbítrio entre o que é dito e o que acontece no relato, produzindo um discurso de equívoco e duplo sentido, altamente neutralizado, entretanto, por uma retórica persuasiva impecável, convencendo o leitor, pela dissimulação, de que tudo é como o narrador diz.
Em seu discurso, o narrador explicita exatamente o que Bakhtin aponta como dialogismo, isto é, um discurso que representa a constituição do sujeito em relação com o mundo, através de diálogos já existentes, formando os elos para um novo texto.
Na construção da narrativa romanesca, o narrador prevê qual será a reação do leitor a seu discurso e, ao dirigir-se a ele, informa aquilo que o leitor necessita saber.
Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro, antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão [...]. Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência [...] tive outras muitas, melhores e piores, mas aquela nunca se apagou do espírito. É o que vais entender, lendo. (ASSIS, 1982, p. 178/9)
O diálogo com o leitor, constante no texto, incorpora, numa espécie de antecipação, as reações do interlocutor imaginário. O dialogismo não se restringe a essa conversa entabulada pelo narrador, pois a enunciação incorpora discursos da tradição e gêneros discursivos já consolidados. Surge, então, a intertextualidade.
As narrativas pertencentes ao cristianismo, principalmente a bíblica, surgem como um intertexto de grande importância em Dom Casmurro, como podemos perceber na citação abaixo:
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a procedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênero essencial trágico. (ASSIS, 1982, p. 187)
Nessa passagem, Machado de Assis parodia o discurso alheio, fazendo com que o leitor reflita sobre o original. Suas palavras nos mostram uma narrativa com inversão de sentidos, pois ele utiliza-se de personagens bíblicos e reescreve, em seu texto, um diálogo totalmente novo.
Na citação, notamos a presença de personagens fundamentais da tradição cristã: Deus, Satanás, Miguel, Rafael e Gabriel. Segundo a Bíblia, Deus é um ser onipotente, onisciente e onipresente, que sabe tudo e está presente em toda parte; Satanás foi um anjo de luz, que desejou ser igual a Deus, se rebelou contra o criador sendo então expulso do céu com sua legião de anjos maus (os demônios). Miguel, Rafael e Gabriel, os três anjos mais importantes da legião de Deus, são considerados o seu braço direito. Como podemos perceber, o narrador tenta convencer o leitor de que Deus e o Diabo são semelhantes a pessoas comuns, com algumas desavenças, resolvidas com um simples pedido de desculpas.
A distorção nas informações prestadas ao leitor transforma a narrativa em algo pouco confiável, falta idoneidade nos fatos apresentados, pois eles contrariam a
tradição, abrindo um leque de interpretações. O narrador, ao apresentar tal versão da relação entre Deus e Satanás, imagina previamente a reação do leitor, a quem instiga durante toda a narrativa.
Mais adiante, no decorrer da leitura, o autor apresenta outro intertexto explícito. Podemos perceber que o discurso novamente inclina-se para as escrituras sagradas, utilizando-se de um texto alheio para compor o seu. A citação a seguir alude ao livro Cântico dos Cânticos, de Salomão, o qual narra os procedimentos que deve ter o cônjuge para com sua companheira:
[...] lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí-las daquela maneira particular, boca sobre boca. É isto, vamos, é isto... Idéia só! Idéia sem pernas! [...] muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. [...] Não me olhou de rosto [...] Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-se. Fui ter com ela [...] A boca com que respondeu era tal que cuida haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco.
Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... [...] Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do cântico um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca". (ASSIS, 1982, p. 225/6)
Nessa passagem, fica claro que Machado de Assis apropriou-se de texto alheio, porém, com sentido inverso ao texto original, sua narrativa tem o objetivo de atrair a atenção do leitor no que diz respeito ao romantismo, ao conteúdo da obra como um todo e não ao texto alheio, que perde seus limites ao ser apropriado por outro enunciado, surgindo assim um novo sentido. Segundo a Bíblia, no livro de Cântico, cap. 2:4-6 lemos:
Eu sou a rosa de Saron
O lírio dos vales
Esposo
Qual o lírio entre os espinhos, tal é a minha querida entre as donzelas...
A sua mão esquerda
esteja debaixo da minha cabeça,
e direita me abrace.
Comparando a passagem acima com a do romance, nos deparamos com o intertexto das semelhanças e podemos analisá-lo de forma que o discurso torna-se uma paráfrase, isto é, o mesmo sentido com palavras diferentes. A ação de Bentinho, a maneira como beija Capitu é narrada de forma a retornar o que está escrito na Bíblia.
Quanto mais nos aproximamos do fim do romance, mais interessante fica o enredo. Fazemos toda essa "viagem" através de outras obras, com as quais Dom Casmurro dialoga, e percebemos quão importante é estarmos atentos ao intertexto. Machado não mede palavras, nem autores, nem obras, produzindo diversos efeitos no leitor. Comprovamos, mais uma vez, esse jogo intertextual, que na passagem abaixo está explícito:
Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das suas práticas religiosas, e da fé pura que as animava. [...] Minha mãe faria, se pudesse, uma troca de promessa, dando parte dos seus anos para conservarem consigo fora do clero. [...]
Como Abraão, minha mãe levou o filho ao monte da visão, e mais lenha para o holocausto, o fogo e o cutelo. E atou Isac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. [...] (ASSIS, 1982, p. 277)
Numa linguagem bastante simples, o autor compara a mãe de Bentinho com Abraão, personagem bíblico de imensurável fé, que não discutia as ordens dadas pelo Senhor. Cumpridor de sua palavra leva o único filho para o sacrifício, assim como D. Glória que promete entregar o filho para servir a Deus, e enviá-lo ao seminário mesmo antes do nascimento. Mulher devota de suas obrigações cristãs não desiste de seus princípios e de sua palavra, fazendo cumprir sua promessa.
A passagem que serve de intertexto para o romance encontra-se no livro de Gênesis 22:1-3, 15-18. Nesta hora, Deus põe Abraão à prova, pois pede seu único e tão desejado filho (tendo sua esposa Raquel dado à luz, sendo ela estéril) em sacrifício. Após os preparativos, Deus envia um anjo para impedir que o pai sacrifique Isac, pois já está ciente do amor existente em Abraão pelo Senhor Deus.
A comparação produzida pela intertextualidade confere um tom específico à situação do personagem Bentinho, ao mesmo tempo que dessacraliza o discurso bíblico, colocando-o em um mesmo patamar que o discurso profano e prosaico do romance.
Podemos perceber, com base na breve análise realizada, que nesse jogo intertextual Machado de Assis, além de construir um narrador que dialoga com o leitor, produz um efeito inesperado de sentidos opostos. Segundo Costa (1995), existe uma diferença entre o real sentido do texto e o sentido que realmente ocasiona. Esses dois parâmetros divergem, sendo que o sentido criado não interfere no sentido já existente.
Toda narrativa é nova, a partir do momento em que o autor se apropria de discursos existentes para elaborar um texto que é só dele.
Fonte: http://seer.uniritter.edu.br/index.php/cenarios/article/viewFile/161/97
Por: Queli Pereira
Este blog objetiva compartilhar com os leitores suas percepções literárias sobre as obras de Machado de Assis,visa salientar que as obras machadianas podem explicitar questões da realidade humana,bem como,sua dubiedade ,amor,traição,mentira,paixão e tudo que de fato faz parte da vida do homem e sua existência.Busca também fornecer informações sobre a biografia e as contribuições do autor para o estudo da literatura.
quarta-feira, 13 de novembro de 2013
terça-feira, 12 de novembro de 2013
Carolina e Machado de Assis
O afeto entre Carolina e Machado não conheceu declínio, ao contrário, cresceu a ponto de os dois se tornarem essenciais um para como outro. Além de levar uma vida caseira, o escritor era muito amoroso com a esposa, como se constata na maneira como se comportava em sua companhia e no carinho com que a mencionava nas cartas aos amigos.
.Carolina é a companheira perfeita, na compreensão, na concordância de temperamentos, no amor perene, na comunhão de sentimentos. O casamento poderia não ter dado certo para um tímido como Machado de Assis, e torturado pela epilepsia. Entretanto, Carolina o compreende e o ama, sabe protegê-lo e ampará-lo, dá-lhe a atmosfera de paz e ternura que o grande escritor necessita para construir a sua obra.
Tão grande é a influência exercida por ela no destino de Machado de Assis que há quem suponha ela tenha contribuído no aprimoramento da língua escorreita do mestre de Várias Histórias. Pode-se dizer que Carolina foi para ele a confidente e a companheira, e disto o escritor nos daria o depoimento comovido nas páginas em que, fechando a sua obra, repassou a felicidade conjugal de Aguiar e D. Carmo, no Memorial de Aires.
Com a idade o casal começou a avistar a morte e até imaginou que seria melhor ele falecer primeiro, já que não tinha parentes que o consolassem da perda. Entretanto, conforme lemos em diferentes passagens da obra machadiana, o destino é uma força indomável e imprevisível.
Em 1896, Carolina adoeceu e o casal passou algumas semanas no Hotel do Corcovado, a enferma não se recuperou totalmente, mas melhorou um pouco. Oito anos depois, teve uma crise mais aguda e em outubro de 1904, o destino levou Carolina, para mortificação do viúvo, que desde então iniciou os preparativos da própria partida. O fato de não terem tido filhos pode ter sido proposital, O escritor temia transmitir a epilepsia.Após a morte de Carolina, Machado pouco saía de casa, e as crises de epilepsia voltaram mais freqüentes e violentas. Manteve a casa como se Carolina ainda morasse com ele; com os objetos e os móveis nos mesmos lugares, como da última vez em que ela os deixou. Ia visitar o seu túmulo todos os domingos, levando flores frescas, tal como dizia em seu soneto.
Machado de Assis morreu em sua casa situada na rua Cosme Velho. Foi decretado luto oficial no Rio de Janeiro e seu enterro, acompanhado por uma multidão, atesta a fama alcançada pelo autor.
BASTOS, Dau. Machado de Assis - num recanto, o mundo inteiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
POR: Suzana Correia Lemos
segunda-feira, 11 de novembro de 2013
Jogo dicotômico no conto Mariana de Machado de Assis
Antes de nos aprofundar
na narrativa escolhida de hoje faz-se necessário discorrer um pouco sobre o
estilo narrativo de Machado. Como sabemos, de acordo com a segmentação
literária, os contos machadianos se enquadram no Realismo, muito embora
saibamos que o autor e suas produções muito se distanciam da doutrina do
mimetismo realista. Enquanto alguns autores preocupavam-se em reproduzir
questões sociais superficialmente, Machado atrelava suas obras às análises
psicológicas profundas, com o objetivo de desvelar o interior da alma humana
apropriando-se então de uma nova maneira de olhar a sociedade. Desta forma,
questões que antes eram vistas separadamente, como se fosse impossível a
existência concomitante, em toda sua produção literária são vistas como
dicotomias que complementam uma a outra.
No conto “Mariana”,
publicado na coletânea Várias Histórias em 1896, observamos toda a essência do
estilo machadiano disposta numa história que envolve fatores pertinentes não
somente às personagens, mas a realidade de toda humanidade numa perspectiva
atemporal que definitivamente não se prende a um único espaço de tempo. Referente
às questões dicotômicas, destacam-se no conto: paixão X razão, vida X morte,
insubmissão X submissão, traição X lealdade, ficção X realidade ou arte X vida.
Vale destacar novamente que este jogo dicotômico proposto por Machado está
muito mais voltado para demonstrar a relação de dependência e coexistência
entre as dicotomias do que suas diferenças ou oposições.
Um narrador onisciente,
que sabe até os pensamentos das personagens nos conta a história de Mariana e
Evaristo. Depois de mais de 18 anos de ausência, Evaristo decide retornar para
o Brasil após ter vivido durante todo esse tempo na Europa. Ao regressar,
encontra-se com um velho amigo que o faz lembrar-se de um antigo amor, então
Evaristo decide saber como está Mariana, vai até a casa da moça e se depara com
um belo quadro com a pintura perfeita de Mariana como nos tempos em que eram
apaixonados. Nesse momento, Mariana salta do quadro e se aproxima de Evaristo,
faz-lhe carícias e confissões que são logo interrompidas pelo criado que o
convida para entrar, tudo não passou de um misto de pensamentos, desejos e
lembranças que não durou mais de seis minutos.
No decorrer do conto,
Evaristo descobre que o esposo de Mariana está prestes a falecer e por isso a
moça se encontra num estado de profunda tristeza que a faz tratá-lo com frieza
e indiferença. O tratamento que recebeu de Mariana faz com que Evaristo
relembre sua história com ela e se pergunte como depois de tanto tempo de um
amor impedido ela pode ser tão fria. A narrativa conta com fortes marcações de datas,
o que nos faz prestar atenção e descobrir que na realidade a história de amor
era de traição. Mariana e Evaristo eram amantes há dezoito anos, já era casada
com Xavier e mantinha um relacionamento amoroso com Evaristo, diante das
pressões sociais e familiares são obrigados a se separarem e isto provoca uma
tentativa de suicídio em Mariana, mas o amante facilmente se recupera e decide
se autoexilar na Europa e, segundo o narrador, vive muito bem lá e sua decisão
de retornar foi embasada apenas na curiosidade de saber das novidades da sua
terra. Ao conversar com um amigo de Mariana, Evaristo descobre que para a
sociedade a tentativa de suicídio tinha como motivo o fato da mãe de Mariana
não aceitar o relacionamento da filha com Xavier, descobre também que durante
todos esses anos o casal viveu uma vida repleta de amor e dedicação total um
para com o outro e que agora ao ver o marido num estado terminal de uma doença
grave, Mariana parecia convalescer com seu conjugue. O conto termina com Mariana
tratando mais uma vez com indiferença Evaristo, que decide voltar para a
Europa.
A primeira vista parece
apenas uma relação de triângulo amoroso, mas na realidade tudo isso se torna
plano de fundo para as questões intrínsecas do ser humano. Quando lemos no
trecho: “E
lembrando-se do retrato da sala, Evaristo concluiu que a arte era superior à
natureza; a tela guardara o corpo e a alma...”,
podemos nos atentar para dicotomia ficção X realidade ou arte X vida, o
narrador afirma que Evaristo trouxe para a realidade desejos da sua alma ao,
através do retrato de Mariana, se deleitar em sua paixão que, logo foi
interrompida pela realidade, nessa perspectiva podemos dizer que a arte é
superior à vida, pois vislumbra a alma, já a vida, esconde-a. De acordo com o
enredo podemos perceber que Mariana outrora era traidora, agora é fiel e
submissa ao esposo, o que nos faz pensar mais uma vez nas relações dicotômicas,
como também o fato de Evaristo e Mariana terem vivido uma paixão e ambos pela
razão terem seguido suas vidas felizes cada um a sua maneira. Podemos observar
a presença dos contrários num único ser, o humano.
Por:Suzana
Correia Lemos
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
A ironia de Machado de Assis sobre a Abolição da Escravidão
A fina ironia de Machado de Assis sobre a Abolição da Escravatura. Na crônica abaixo, o saudoso escritor aborda a questão do “fim da escravidão”, que havia ocorrido oficialmente no dia 13 de maio de 1888
Por Machado de AssisBons dias!
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
Machado de Assis. Crônica publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888. (Foto: Arquivo)
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
- Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…
- …Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…
- Artura não qué dizê nada, não, senhô…
- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
- Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
Boas noites.
Texto extraído do livro; Assis, Machado de. Obra Completa, Vol III. 3ª edição. José Aguilar, Rio de Janeiro. 1973. p. 489 – 491.
Fonte: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/machado-de-assis-abolicao-escravidao.html
Por: Priscila de Sá Braga Fonseca
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
Machado de Assis: genialidade na periferia do mundo
O crítico americano Harold Bloom, ao fazer seu tratado sobre a
genialidade na literatura, considerou Machado de Assis “uma espécie de
milagre”. Nascido pobre num país periférico, mestiço ainda em época de
escravidão, portador de epilepsia, conseguiu equiparar-se a escritores
em condições de notoriedade bem mais confortáveis do ponto de vista
histórico-cultural. Na lista de Bloom, há outros 99 autores
excepcionais de todos os tempos, grande parte de línguas inglesa e
francesa, com séculos de tradição à frente.

Reprodução / Acervo Academia Brasileira de Letras
Os
relatos biográficos – que poderiam ajudar a compreender como superou as
expectativas para alguém em sua posição social – muitas vezes se
contradizem. Sabe-se que nasceu numa casa modesta, no Morro do
Livramento, no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839. O pai era
pintor, filho de ex-escravos, a mãe, lavadeira portuguesa. Conta-se que
uma madrinha rica deu-lhe acesso a uma grande biblioteca. Há quem diga,
porém, que a tal senhora morreu antes que o garoto completasse seis
anos, idade em que não poderia ter lido muita coisa, ou talvez quase
nada.
Existem versões ainda mais mirabolantes para esclarecer a razão de alguns de seus tantos talentos. O escritor Carlos Heitor Cony, que se define como “machadiano”, atribui a uma amante inglesa, oficialmente casada com José de Alencar – sim, o Alencar autor de “Iracema” -, o mérito de ter ensinado a Machado de Assis o idioma de Shakespeare. Para Cony, Mário de Alencar é, na verdade, filho bastardo, enredo que ironicamente estaria espelhado no triângulo Bentinho-Capitu-Escobar.
Por ajuda da sorte ou com bastante esforço, o fato é que, bem antes dos 20, o rapaz mulato de origem humilde começa a trabalhar na imprensa e passa a publicar crônicas cada vez mais lidas. À beira dos 30, lança o primeiro livro, “Crisálidas”; e pouco depois dos 40, o primeiro grande livro, “Memórias Póstumas”, que inaugura sua segunda e melhor “fase”. Aos 50, funcionário público bem-sucedido, vive no Cosme Velho com a mulher, Carolina, está cercado de admiradores e amigos e é visto como o maior escritor em atividade. À exceção de Silvio Romero, que o detesta, todos os seus pares o reconhecem: Visconde de Taunay, Joaquim Nabuco, Graça Aranha, Raul Pompéia, Olavo Bilac, entre outros, com quem fundará, em 1896, a Academia Brasileira de Letras, a casa que mais festeja seu nome no ano do centenário de sua morte.
Fonte: http://lazer.hsw.uol.com.br/machado-de-assis2.htm
Por: Priscila de Sá Braga Fonseca
Reprodução / Acervo Academia Brasileira de Letras
Existem versões ainda mais mirabolantes para esclarecer a razão de alguns de seus tantos talentos. O escritor Carlos Heitor Cony, que se define como “machadiano”, atribui a uma amante inglesa, oficialmente casada com José de Alencar – sim, o Alencar autor de “Iracema” -, o mérito de ter ensinado a Machado de Assis o idioma de Shakespeare. Para Cony, Mário de Alencar é, na verdade, filho bastardo, enredo que ironicamente estaria espelhado no triângulo Bentinho-Capitu-Escobar.
Por ajuda da sorte ou com bastante esforço, o fato é que, bem antes dos 20, o rapaz mulato de origem humilde começa a trabalhar na imprensa e passa a publicar crônicas cada vez mais lidas. À beira dos 30, lança o primeiro livro, “Crisálidas”; e pouco depois dos 40, o primeiro grande livro, “Memórias Póstumas”, que inaugura sua segunda e melhor “fase”. Aos 50, funcionário público bem-sucedido, vive no Cosme Velho com a mulher, Carolina, está cercado de admiradores e amigos e é visto como o maior escritor em atividade. À exceção de Silvio Romero, que o detesta, todos os seus pares o reconhecem: Visconde de Taunay, Joaquim Nabuco, Graça Aranha, Raul Pompéia, Olavo Bilac, entre outros, com quem fundará, em 1896, a Academia Brasileira de Letras, a casa que mais festeja seu nome no ano do centenário de sua morte.
Fonte: http://lazer.hsw.uol.com.br/machado-de-assis2.htm
Por: Priscila de Sá Braga Fonseca
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
O Ser Machado
O Ser Machado caracteriza-se pela peculiaridade de suas palavras, das expressões inusitadas e divergentes das concepções sociais. Suas manifestações influenciaram seu período, atravessaram épocas e, ainda, influem discursões a respeito das propriedades distintivas da linguagem utilizada pelo escritor em suas declarações.
Algumas afirmações do interventor das ideologias dos séculos XIX e XX
Por: Queli Pereira
terça-feira, 5 de novembro de 2013
CONVITE
A Academia Brasileira de Letras possui um espaço exclusivo para pesquisa ao vocabulário utilizado por Machado de Assis nas obras em prosa e poesia.
Academia Brasileira de Letras (ABL)
Av. Presidente Wilson 203, Castelo | CEP 20030-021 | Rio de Janeiro | RJ Tel: (21) 3974-2500 | E-mail: academia@academia.org.br
Por: Queli Pereira
segunda-feira, 4 de novembro de 2013
Livro tenta desvendar transição de Machado de Assis
É comum dividirmos a obra de Machado em duas fases, e explicarmos a primeira em função da segunda. Por exemplo, no que se refere à temática dos ciúmes, tão presente no autor, Ressurreição (1872) muitas vezes é tomado como ensaio para o adensamento moral mais ambíguo e socialmente crítico que se encontra em Dom Casmurro (1899). Segundo João Cezar, essa operação é falaciosa: na primeira fase, “o ponto de vista machadiano era esteticamente tradicional e moralmente conservador”. Não se trata do aperfeiçoamento de uma fórmula, mas da adoção de um modelo distinto de fazer literatura, calcado na crise de um autor que se sonda diante de um rival contemporâneo e, aparentemente, mais forte. Eis, aqui, o fator Eça de Queirós.
Os dois textos de Machado sobre os primeiros romances de Eça são, em geral, tomados como o ponto alto da sua crítica literária; mas, de acordo com o crítico, eles representam a perspectiva que o próprio Machado deixaria para trás. Na virada para os anos 1880, ambos os escritores reconsideraram suas carreiras, optando por um modo irônico de construção da narrativa e por um diálogo mais direto com fontes distantes das práticas vigentes. Nessa adoção de um “anacronismo deliberado” estaria a vigorosa reinvenção de Machado, que soube refazer-se, lançando mão de uma poética da emulação.
A poética da emulação consiste em um gesto de leitura e adaptação criativa de práticas retóricas abandonadas a partir do romantismo: “Partindo-se da imitação de um modelo considerado autoridade num determinado gênero, busca-se emular esse modelo produzindo uma diferença em relação a ele”. João Cezar não é o primeiro a argumentar que o diálogo de Machado com autores e tradições diversas responde em parte pela novidade de um forma narrativa mais plástica, evidente a partir das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Na proposta de um “retorno ao texto”, o crítico realiza uma leitura cruzada, no vaivém do tempo, em busca de convergências entre contos, crônicas, peças de crítica, teatro e romance. Tal proposta evita sutilmente o confronto direto com a copiosa fortuna crítica sobre o autor, ao mesmo tempo em que constrói argumento elegante para expor suas diferenças. É curioso que alguns dos comentadores das mesmas questões ocupem o espaço das epígrafes, na abertura de cada uma das sete partes do livro. Aplicada ao texto do próprio crítico, a teoria da emulação revela um gesto irônico. Algumas das teses expostas foram debatidas por outros, sem que estes sejam referidos diretamente como participantes no debate. A presença estrutural do narrador volúvel, em Roberto Schwarz; a função da leitura e dos leitores na construção da assinatura machadiana, em Hélio de Seixas Guimarães; as figurações da chamada forma shandiana, em Sérgio Paulo Rouanet; o complexo jogo do intertexto estrangeiro, mapeado por Marta de Senna, entre outras interpretações, são postas em suspenso, a fim de que o texto de Machado compareça reapresentado pelos nexos de uma poética da emulação.
Na primeira fase, João Cezar identifica um narrador que “sabe tudo” e dita ao leitor o que pensar; já na transição para a maturidade, as narrativas são marcadas por maior abertura de sentido, aceitando a dúvida e convidando o leitor a comparecer com o juízo. A análise dos procedimentos de emulação pós-1878 leva o crítico a interpretar uma grande variedade de estratégias. O livro se adensa e ganha interesse. A divergência entre os autores transforma-se em método, e, afinal, a poética da emulação assume uma dimensão propriamente política: a cópia, em sistemas marginais, pode se constituir em desafio a modelos hegemônicos e fomento de respostas originais. Na consideração de paralelos com o cânone estrangeiro, além de obras de outros campos, a contribuição de João Cezar de Castro Rocha impressiona pela amplitude das questões abordadas.
Por Uma Poética da Emulação é livro erudito e variado. Desconfio: machadianos de carteirinha poderão torcer o nariz. Porém, o leitor encontrará aí um argumento original e instigante, devido, em parte, à própria fascinação de se desvendar um autor na verve das suas reinvenções. E sabe-se que a fascinação é muitas vezes toda a verdade.
FONTE:http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,livro-tenta-desvendar-transicao-de-machado-de-assis,1064440,0.htm
POR:SUZANA CORREIA LEMOS
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
Machado de Assis e a estética da recepção
DEPARTAMENTO
DE LETRAS
SOLETRAS,
Ano VII, N° 14. São Gonçalo: UERJ, 184 jul./dez.2007
MACHADO
DE ASSIS E A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
Marillia
Raeder Auar Oliveira (UERJ)
Com a aula inaugural de
Hans Robert Jauss, na Universität Konstanz, surge a Estética da recepção. Em
1967, dá-se a publicação de sua aula, sob o nome de A história da literatura
como provocação à ciência da literatura (Literaturgeschichte als
Provokation der Literaturwissenschaft). Wolfgang Iser – teórico
privilegiado neste trabalho – também publica um texto inaugural, já que ele foi
igualmente um dos promotores do movimento – intitulado A estrutura apelativa
dos textos (Die Appelstruktur der Texte), datado de 1970. Indo no
sentindo oposto ao da crítica imanentista (que apenas
considerava a obra em sua face textual),
a Estética da recepção surgia como uma alternativa a este modo de reflexão,
assinalando a preocupação com o leitor do texto, que era antes esquecido em
nome da importância estética da obra. O que os principais articuladores da
Estética da recepção – Jauss e Iser – propunham, portanto, era justamente
conjugar harmoniosamente a qualidade estética com a presença do leitor. Dentro
das noções de Estética da recepção, procura-se considerar leitor e obra num
mesmo patamar, uma vez que, ainda seguindo esta linha de pensamento, o valor
estético do texto se faz tão-somente na consciência do leitor, sendo a obra uma
provocadora dos efeitos. Iser dirá, posteriormente, em sua teoria do efeito
estético (theorie ästhetischer Wirkung), que é preciso haver uma
total interação entre pólo estético (leitor) e pólo artístico (obra).
Ultrapassando Jauss, Iser ainda mostrará o papel ativo do leitor previsto pela
própria estrutura da obra literária, e configurado através da categoria de leitor
implícito.
Para que a experiência
estética do objeto literário ocorra, é preciso que o leitor real mantenha
uma dupla posição: se afaste de conceitos preconcebidos e não se identifique a
ponto de não ler o texto. Em ambos os casos, fica prejudicada a interação
porque o leitor deixa de acompanhar o que as “perspectivas textuais” informam
(narrador, enredo, personagem e leitor fictício), lendo o que bem quer, e não o
que vem de tais perspectivas. Para tanto, o leitor, diante do texto, afasta-se
de si mesmo, sofre uma
tomada de posição, uma reorganização de
sua postura, para então encontrar prazer no próprio objeto de prazer, e
atribuir-lhe, finalmente, um significado, sempre através de uma relação
contínua de alteridade, de comunicação efetiva entre o que passaremos a chamar,
junto com Iser, de pólo artístico e pólo estético. Iser, em seu
texto inaugural, Die Appelstruktur der Texte, nos fala de uma relação
intrínseca entre a obra literária e o efeito empiricamente internalizado pelo
leitor. Tal possibilidade de concretude de efeito, já internalizada, anterior
mesmo à existência de um leitor determinado, é o que chama de “estrutura
apelativa”. O texto literário não retrata a realidade propriamente dita,
conforme se diz ingenuamente, mas suscita a configuração de uma significação para
a realidade do leitor, por ele produzida, a partir dessa relação comunicativa
entre texto e leitor. Assim sendo, a obra não traz em si um significado
fechado, pronto, mas tal significado é estabelecido durante o processo de
leitura, podendo haver, portanto, tantos significados quantos leitores. Por
isso o texto não é a expressão de uma realidade anterior a ele, mas contém em
seu interior indeterminações (que Iser chamará posteriormente de vazios),
sendo assim capaz de produzir tal apelo.
A indeterminação –
ou os vazios – constitui condição fundamental para a interpretação. O
leitor, no jogo com o texto, deverá suplementar tais vazios para que
vivencie a experiência estética. O preenchimento destes lugares vazios do
texto exige do leitor um papel ativo, já previsto pela obra, como anteriormente
apontamos. Ao preencher os pontos de indeterminação através do ato de
interpretação, o leitor passa por um efeito estético, em decorrência de sua
interação com a obra, transformando o significado (o enunciado da estrutura) em
significação (o que o leitor constrói).
O texto, portanto,
ganha um maior contorno quando articuladas as diferenciações entre os textos e
suas possíveis interpretações. Como a realidade na obra literária se modifica,
como não há uma orientação direta e reflexiva dos dados da referencialidade, o
texto fictício ganha uma variada gama de experimentação e diversas
possibilidades de efeitos (vivência de significado), proporcionadas pela
entrada em cena do leitor. Daí a importância da interpretação neste trabalho. O
conto “Missa do Galo” (Assis, 1982) pertence ao livro Páginas recolhidas,
lançado em agosto de 1899. O livro reúne grande parte das
melhores obras de Machado de Assis, tais
como “Idéias de canário”, “O velho senado”, “Caso da vara”, “Papéis velhos”,
entre outros. Embora agrupando peças literárias de tanto mérito, o livro obteve
apenas três resenhascríticas na época em que foi lançado, o que contrasta com o
grande sucesso junto ao público leitor, tendo sido esgotada a primeira edição de
dois mil exemplares em apenas quatro meses, o que serviu para legitimar ainda
mais o requinte e a popularidade do autor. As resenhas críticas em questão
foram profundamente positivas e elogiosas, ressaltando a genialidade do autor e
o distinguindo, mais uma vez, como um dos maiores ficcionistas do nosso país.
Freqüentemente o
sucesso de Machado de Assis é comparado ao de José de Alencar, pois ambos
puderam desfrutar, ainda em vida, dos louros proporcionados pela grandiosidade
de suas obras. Entretanto, nenhum outro autor, nem mesmo Alencar, gozou de
tantos aplausos, da unanimidade e do mérito de ser consagrado como o maior
escritor do país, sendo chamado de mestre por companheiros de trabalho com
nomes já consagrados, como por exemplo, Olavo Bilac. Por outro lado, cabe
ressaltar, Alencar experimentou maior popularidade por sua escrita de mais fácil
compreensão. Machado, grande estilista, obteve imensa glória frente aos
críticos por sua linguagem requintada e pleno domínio do nosso idioma.
Entre os elementos que
atestam a capacidade crítica do autor de “Missa do galo”, destacamos a
possibilidade de entendimento da sociedade contemporânea a Machado como sendo
hipócrita, condenando amores e desejos verdadeiros, mantendo casamentos
infelizes em nome de convenções e das boas aparências. Ressaltamos que a
leitura do texto dá margem para este tipo de interpretação, o que não significa
dizer que a literatura de Machado seja de denúncia. Desta maneira, o autor tem
a capacidade
de recriar, em seu texto, o espírito
crítico de sua época, sendo um grande mestre na arte da observação do ser
humano, de sua psicologia e na análise de seus movimentos e ações, tudo isso no
interior de sua ficção, que nos é apresentada com seu
inconfundível requinte estético. Leopoldo de Freitas (apud
Machado, 2003), em resenha sobre o livro Páginas recolhidas, exalta
a obra, trazendo à luz o fato de ser a literatura
de Machado sempre atual, não importando
em que momento ela seja lida, observando o clima de leitura ágil e envolvente.
Suavemente
descrevendo aspectos, personagens, caracteres, analisando situações,
colorindo as
cenas de algum quadro social e humano, desperta emoções
sem que a atenção sinta fadiga ou
dispense o mínimo esforço. (Machado, 2003: 220)
Leopoldo de Freitas foi
muito feliz em sua observação, expondo exatamente o que faz Machado em sua
narrativa econômica e ao mesmo tempo riquíssima: descreve suavemente, emprega
tintas de singeleza e agudeza ao mesmo tempo; é pungente e delicado ao traçar
as movimentações nas cenas, como se fosse um diretor de teatro que manipula
conscientemente os seus personagens em cena, e finalmente, suscita um
posicionamento do leitor, de modo que haja um processo de comunicação entre o
receptor e o texto, sem que este traga pronto dentro de si uma crítica qualquer.
Para o Leopoldo, “Missa do galo” é um conto digno de louvor, ocupando uma
posição de destaque dentro da obra magnífica de Machado, entre os contos de
imaginação, louvando também os aspectos humorísticos/sarcásticos empregados
pelo autor, em especial por saber atingir o ridículo e os defeitos do
comportamento humano. Como exemplificação das imperfeições humanas, podemos
citar a traição de Meneses, seguida da conivência de sua esposa, que aceita tal
comportamento do marido em nome das boas aparências. Temos, ainda, o consentimento
da
mãe de Conceição e as risadas irônicas
por parte das criadas, o que indica o conhecimento, por parte delas, da traição
do escrivão.
Páginas Recolhidas data
de 1899, e a história que nos é relatada no conto ocorreu há anos atrás do
tempo da enunciação, conforme anuncia o próprio narrador, Nogueira, que é um
memorialista. Ele revisita o passado para contar sua história, o que fica claro
pela expressão usada pelo narrador, “há muitos anos”, ao dizer da conversação
que tivera com certa senhora numa noite de Natal. Trata-se de uma narrativa que
quebra a expectativa de leitores mais ingênuos, uma vez que Machado não se
compromete com uma literatura redutora, com momentos de clímax, com um desfecho
clássico, tipicamente romântico (happy end ou final definido, seja ele trágico,
cômico ou de outro tipo qualquer), com as noções de antagonista e protagonista.
Machado, antes de tudo,
deixa os poucos acontecimentos dessa narrativa em sua potencialidade, em sua
não-resolução, para que o leitor implícito, comprometido
com os efeitos estéticos que o texto possa nele provocar, vá formando seus
próprios correlatos de sentença, que são fenômenos da percepção. O leitor vai
preenchendo os pontos de indeterminação, sendo, desta forma, capaz de construir
um sentido para a obra, fazendo com que essa interação com o texto resulte em
tomada de consciência de sua inserção em sociedade. Isso não significa,
contudo, que, no texto, já se encontra um sentido fechado, tal como pretendia
certa crítica marxista. Pelo contrário, é justamente porque o leitor se depara
com a ausênciade uma resolução de visões de mundo diferenciadas e não
resolvidas que o leitor se vê impulsionado a pensar sua inserção social, face a
tal vazio.
Vemos que, diante do
exposto, a dicotomia sujeito/sociedade não mais existe, uma vez que tais
conceitos são indissociáveis. O discurso ficcional da literatura, segundo Iser,
se apropria das referencialidades, não para endossá-las, mas para colocá-las em
questão. Isto é feito através de diferentes visões de mundo que se encontram em
embates, em conflitos que não se resolvem. O discurso ficcional reorganiza
horizontalmente as normas e os valores sociais,
como descreve Iser. Daí a explicação do motivo por que não faz sentido a
separação ficção versus realidade.
Tal interação entre
pólo estético e pólo artístico66 é sempre tensa e
conflituosa, daí a capacidade de autoconhecimento por parte do leitor, comprometido
com a leitura. O resultado é a experiência estética ou, o que é o mesmo, a
vivência de significado que se transforma em significação, por parte do leitor,
sobre as normas do seu contexto pragmático, ou seja, a sua própria
referencialidade. Atribuímos, então, um caráter de funcionalidade à literatura.
Logo no início do conto
o leitor se depara com a seguinte informação: “Nunca pude entender uma
conversação que tive com uma senhora, há muito anos, contava eu dezessete, ela
trinta”. Observa-se, primeiramente, a diferença de tempo que separa o que está
para ser relatado em relação ao momento em que a história está sendo contada,
ou seja, a diferença entre o tempo do enunciado e o da enunciação. Trata-se de
um exercício de memória do personagem-narrador, Nogueira, o que já atribui por
si um caráter ficcional ao que está sendo relatado, aliado à questão da desconfiança
em dobro que devemos ter em relação a esse enunciador.
Essa primeira frase
aponta ainda para a diferença de idade entre Nogueira e Conceição, figura
feminina em torna da qual gira o conto. O narrador não é explícito quanto a
essa diferença de idade questionada pelos códigos sociais, aspecto proibitivo
de uma possível relação que poderia ter havido entre os dois. Trata-se de uma
escolha estilística do autor, que ao mesmo tempo em que suaviza essa questão,
deixando a informação implícita, revela, sub-repticiamente, tal diferença, com
dose certa de ironia e crítica às convenções de sua época. Além disso, não
sendo explícito, ele atrai mais fortemente o olhar do receptor para essa
questão da diferença de idade entre os dois.
Ao lermos o conto “Missa
do galo”, recebemos seus sentidos e também sua “falta de sentido”, a qual vamos
preenchendo, durante o próprio processo da leitura, em pleno ato de recepção
textual. Tais são os vazios que se formam durante a interação do leitor, o pólo
estético, com o texto, o pólo artístico, entre as diversas perspectivas do
texto – as de enredo, personagem, leitor fictício, narrador. Os espaços vazios,
durante o ato de leitura, tornam-se obra literária, dotada de significação pelo
leitor, ou seja, a literatura se configuraria como condição de possibilidade para
que o leitor construa uma significação.
Nogueira – narrador do conto e,
portanto, detentor do poder, lugar de onde o discurso é proferido –, está
hospedado na casa do escrivão Meneses, na época do Natal, a fim de assistir à
Missa do galo na Corte.
A família limita-se ao próprio escrivão, sua mulher Conceição, a mãe desta, Dona Inácia, sendo que, na casa, vivem também duas escravas. Logo no início do conto o narrador nos relata o fato de Meneses trair sua esposa, mas seu discurso é construído de maneira elaborada, e eufemisticamente, como diz o próprio enunciador, uma vez que as traições se dão quando Meneses diz à mulher que vai ao “teatro” – local de representação, que se une à própria representação do marido e à da esposa, que permanece quieta.
A família limita-se ao próprio escrivão, sua mulher Conceição, a mãe desta, Dona Inácia, sendo que, na casa, vivem também duas escravas. Logo no início do conto o narrador nos relata o fato de Meneses trair sua esposa, mas seu discurso é construído de maneira elaborada, e eufemisticamente, como diz o próprio enunciador, uma vez que as traições se dão quando Meneses diz à mulher que vai ao “teatro” – local de representação, que se une à própria representação do marido e à da esposa, que permanece quieta.
Assim, tanto o teatro
como essa casa são locais de encenação, respaldadas pelo
consentimento de uma sociedade fingida. A princípio, Dona
Conceição é apresentada como “boa”, “santa”, de comportamento e temperamento “moderados”,
“sem extremos”, ou seja, uma típica figura feminina da sociedade patriarcal
brasileira do século XIX. De acordo com o que relata o narrador, a maior
prioridade de Conceição era manter as aparências: “aceitaria um harém, com as
aparências salvas”. Porém, a essa imagem de mulher mediana, “nem bonita nem
feia”, apenas simpática, interpôs-se a imagem de uma mulher “linda, lindíssima”,
na noite de Natal em que Nogueira esperava um amigo à meia noite, para que os
dois fossem assistir à missa do galo.
Enquanto esperava,
Nogueira entreteve-se com a leitura d’Os três mosqueteiros, romance romântico,
cheio de aventuras. O narrador desperta da leitura do romance para viver sua
própria aventura naquela noite. De tão comprometido com sua leitura, ele
percebe que os “minutos voavam”, ao contrário do que costumam ser quando são de
espera. No entanto, ao bater onze horas, um pequeno ruído despertou a atenção
de Nogueira, e, em seguida, uns passos no corredor. Tratava-se da figura de Dona
Conceição, à porta da sala. O que se segue é um longo diálogo de palavras
murmuradas e sussurradas, um jogo de sedução entre os dois personagens que faz
com que o leitor comece a fazer projeções a respeito do que possa acontecer
naquela sala, projeções que serão retificadas ou ratificadas ao longo da
narrativa. Nogueira pergunta se, por acaso, acordou Conceição, ao que ela responde
“acordei por acordar”. Esse enunciado provoca desconfiança tanto no leitor
quanto no narrador-personagem, já que este, ao fitá-la,
percebe que seus olhos eram de pessoa
que nem havia pegado no sono. Verificamos, desde já, um movimento de interesse,
por parte de Dona Conceição, e de ambigüidade, pois podemos pensar que ela não
havia dormido para esperar o momento propício à sua aparição – momento em que
se encontraria a sós com o rapaz. Ou, por outro lado, podemos também pensar que
o suposto despertar de Conceição coincide com o próprio despertar da
sexualidade do rapaz.
Ao mesmo tempo em que
Nogueira estava lendo um romance romântico, a visão de Conceição lhe parece
também romântica. As imagens que esse discurso nos traz são todas ligadas entre
si, já que, em seguida, o diálogo inicial dos dois aborda justamente o tema de
romances. Num jogo sedutor entre os dois, pelo o que Nogueira nos passa, Conceição
inclina a cabeça, olha-o com os olhos meio cerrados, umedece os lábios, e em
seguida, há um silêncio, sinal de possível desconforto e intimidade entre os
dois. Todos os movimento seguintes de Conceição são feitos sem que
ela desvie seu olhar de Nogueira, quase hipnotizando-o. A
criação da figura feminina feita por Machado de Assis é riquíssima em aspectos
psicológicos, como, aliás, costumam ser suas personagens.
São donas de intenso
magnetismo pessoal e poder de sedução. Conceição, ao contrário do que demonstra
ser no início do conto (provavelmente sentindo-se emparedada por convenções da
época), não é “santa” ou indefesa. Ela, antes, representa esse papel de esposa
condescendente e resignada, mas possui dentro de si desejos e vontades
naturais, como toda mulher, e ousou insinuá-los. Prova de que não se trata de
uma “santa”, além de sua ousadia, em certa passagem da conversação entre ela e
Nogueira, em que, não obstante afirmar que preferia duas santas às estampas que
figuravam na parede de sua sala, revela “compreender” perfeitamente as
preferências masculinas por quadros de apelo erótico:
— Estes quadros estão ficando velhos. Já
pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o
marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava
"Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro,
mas eram
mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
— São bonitos,
disse eu.
— Bonitos são;
mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia
duas imagens,
duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de
barbeiro.
— De barbeiro? A
senhora nunca foi a casa de barbeiro.
— Mas imagino que
os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e
namoros, e
naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas.
Em casa de
família é que não acho próprio. É o que eu penso, mas eu penso muita cousa assim esquisita.
Conceição podia nunca ter entrado em uma casa de barbeiro, mas possuía imaginação ativa o suficiente para dizer com tamanha ênfase sobre saber o que se passa em seu interior. Podia ser que as imagens de mulheres não lhe agradassem, mas geravam, em contrapartida, pensamentos tortuosos para uma senhora casada em pleno século XIX, inserida no seio de uma sociedade patriarcal e hipócrita. Ainda no final do diálogo transcrito acima, temos a insinuação de Dona Conceição: “mas eu penso muita cousa assim esquisita”, deixando transparecer que este não é seu único pensamento ousado, que, por trás deste inicial, há outros, possivelmente indizíveis naquele tempo. Por outro lado, Conceição externa seus pensamentos através de sua movimentação insinuante e do desejo de prolongar o encontro com o rapaz.
A cada tentativa de interrupção do
momento a sós, por parte de Nogueira, Conceição faz de tudo para mantê-lo por
perto, ao dizer que ainda não são horas,
já que acabara de olhar o relógio, para, em seguida, tratar de mudar de assunto
e, desta forma, recomeçar o efeito de cumplicidade e estender o encontro entre
os dois. Ela diz que está ficando velha, provavelmente em tom provocativo, pois
sabemos que agrada muito às mulheres receber elogios, o que suscita a seguinte
reação de Nogueira, em total tom de intimidade e admiração: “Que velha o que,
D. Conceição?”.
Diante desta observação
de Nogueira, Conceição levanta-se e começa a andar pela sala, num balanço
singular, recomeçando seu jogo sedutor. Conforme José Veríssimo, na resenha já
citada anteriormente, oautor de Dom Casmurro é capaz de recriar o ambiente de
sua época,
Com as suas poderosas faculdades de
observação e análise, e todas as suas
qualidades de estilo, de representação,
de resumir em uma frase curta, em
uma breve sentença, uma impressão, uma
situação de espírito ou um estado
d’alma, ninguém como ele poderia dar-nos
o quadro da sua época. (Machado,
2003: 218)
Por
vezes, Conceição pede que Nogueira fale mais baixo, pois sua mãe pode acordar.
Trata-se, mais uma vez, de um discurso ambíguo por parte de Conceição. Talvez
ela não queira que a mãe acorde para não atrapalhar seu encontro com Nogueira,
ou pode ser que tal desejo se deva ao fato de não querer incomodar a própria
mãe. Trata-se de um vazio, que fica no ar, potencialmente, que as perspectivas
do texto não resolvem, cabendo ao leitor comprometido formular sua própria
resposta. Assim, o sentido do texto é visto como construção, em vez de
revelação de verdades pré-existentes. Não existe um enunciado isoladamente,
neutro ou independente, mas sempre fazendo parte de uma série ou de um conjunto
de enunciados. Desta forma, tudo o que o narrador e os personagens enunciam
está intimamente ligado: um formula uma “pergunta”, que, logo em seguida, vai
corresponder ao movimento do outro.
A
materialidade do discurso faz com que ele passe a emergir enquanto objeto,
articulador de imagens que são propostas no campo sintagmático do texto
literário, que provocam em nós, leitores, diversas e diferenciadas reações de
percepção diante do objeto literário que temos em mãos, pois cada leitor pode
reagir diferentemente a um mesmo texto, levando em consideração os fatores
realmente manifestos, extrateóricos, ou seja, sua própria experiência de vida,
a sua referencialidade, e ainda, sua inserção em sociedade. Desta forma, o
leitor está também sujeito aos efeitos históricos, identificando-se ou
identificando certos elementos no texto, para que a experiência da alteridade,
para que esse processo de comunicação, resulte em um despertar de consciências
por parte dos leitores.
Se
antes Conceição não era bonita nem feia e, logo após, torna-se“linda,
lindíssima”, ao final do conto, no dia seguinte à missa do galo, ela voltará a
ser sóbria e “santa”, nada que lembrasse a senhora da conversação da véspera.
Fica em suspensão o desejo de comprovação do que havia de fato ocorrido naquela
sala. Mas tal idéia é apenas sugerida, porque essas respostas não nos são
fornecidas. O leitor deve assumir a posição de um cético, que prefere sempre
manter a dúvida para poder continuar investigando, pensando. O desejo de
conhecer respostas deve permanecer como tal: uma meta apenas desejável,
distante, por isso mesmo inatingível, o que implica afastamento. Uma vez
devorado, o desejo é aniquilado. Neste caso, desapareceria então a dúvida e a
continuidade de investigação, a ânsia do saber. No entanto, em “Missa do galo”,
permanece na mente do narrador tal dúvida, e principalmente, marcada aquela
experiência no rapaz para a vida toda, assim como em nós, receptores do texto machadiano,
conservam-se todas as experiências estéticas provocadas pelo discurso do
narrador e pelas imagens imanentes da ficção de Machado.
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Por:
Priscila de Sá Braga Fonseca
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