DEPARTAMENTO
DE LETRAS
SOLETRAS,
Ano VII, N° 14. São Gonçalo: UERJ, 184 jul./dez.2007
MACHADO
DE ASSIS E A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
Marillia
Raeder Auar Oliveira (UERJ)
Com a aula inaugural de
Hans Robert Jauss, na Universität Konstanz, surge a Estética da recepção. Em
1967, dá-se a publicação de sua aula, sob o nome de A história da literatura
como provocação à ciência da literatura (Literaturgeschichte als
Provokation der Literaturwissenschaft). Wolfgang Iser – teórico
privilegiado neste trabalho – também publica um texto inaugural, já que ele foi
igualmente um dos promotores do movimento – intitulado A estrutura apelativa
dos textos (Die Appelstruktur der Texte), datado de 1970. Indo no
sentindo oposto ao da crítica imanentista (que apenas
considerava a obra em sua face textual),
a Estética da recepção surgia como uma alternativa a este modo de reflexão,
assinalando a preocupação com o leitor do texto, que era antes esquecido em
nome da importância estética da obra. O que os principais articuladores da
Estética da recepção – Jauss e Iser – propunham, portanto, era justamente
conjugar harmoniosamente a qualidade estética com a presença do leitor. Dentro
das noções de Estética da recepção, procura-se considerar leitor e obra num
mesmo patamar, uma vez que, ainda seguindo esta linha de pensamento, o valor
estético do texto se faz tão-somente na consciência do leitor, sendo a obra uma
provocadora dos efeitos. Iser dirá, posteriormente, em sua teoria do efeito
estético (theorie ästhetischer Wirkung), que é preciso haver uma
total interação entre pólo estético (leitor) e pólo artístico (obra).
Ultrapassando Jauss, Iser ainda mostrará o papel ativo do leitor previsto pela
própria estrutura da obra literária, e configurado através da categoria de leitor
implícito.
Para que a experiência
estética do objeto literário ocorra, é preciso que o leitor real mantenha
uma dupla posição: se afaste de conceitos preconcebidos e não se identifique a
ponto de não ler o texto. Em ambos os casos, fica prejudicada a interação
porque o leitor deixa de acompanhar o que as “perspectivas textuais” informam
(narrador, enredo, personagem e leitor fictício), lendo o que bem quer, e não o
que vem de tais perspectivas. Para tanto, o leitor, diante do texto, afasta-se
de si mesmo, sofre uma
tomada de posição, uma reorganização de
sua postura, para então encontrar prazer no próprio objeto de prazer, e
atribuir-lhe, finalmente, um significado, sempre através de uma relação
contínua de alteridade, de comunicação efetiva entre o que passaremos a chamar,
junto com Iser, de pólo artístico e pólo estético. Iser, em seu
texto inaugural, Die Appelstruktur der Texte, nos fala de uma relação
intrínseca entre a obra literária e o efeito empiricamente internalizado pelo
leitor. Tal possibilidade de concretude de efeito, já internalizada, anterior
mesmo à existência de um leitor determinado, é o que chama de “estrutura
apelativa”. O texto literário não retrata a realidade propriamente dita,
conforme se diz ingenuamente, mas suscita a configuração de uma significação para
a realidade do leitor, por ele produzida, a partir dessa relação comunicativa
entre texto e leitor. Assim sendo, a obra não traz em si um significado
fechado, pronto, mas tal significado é estabelecido durante o processo de
leitura, podendo haver, portanto, tantos significados quantos leitores. Por
isso o texto não é a expressão de uma realidade anterior a ele, mas contém em
seu interior indeterminações (que Iser chamará posteriormente de vazios),
sendo assim capaz de produzir tal apelo.
A indeterminação –
ou os vazios – constitui condição fundamental para a interpretação. O
leitor, no jogo com o texto, deverá suplementar tais vazios para que
vivencie a experiência estética. O preenchimento destes lugares vazios do
texto exige do leitor um papel ativo, já previsto pela obra, como anteriormente
apontamos. Ao preencher os pontos de indeterminação através do ato de
interpretação, o leitor passa por um efeito estético, em decorrência de sua
interação com a obra, transformando o significado (o enunciado da estrutura) em
significação (o que o leitor constrói).
O texto, portanto,
ganha um maior contorno quando articuladas as diferenciações entre os textos e
suas possíveis interpretações. Como a realidade na obra literária se modifica,
como não há uma orientação direta e reflexiva dos dados da referencialidade, o
texto fictício ganha uma variada gama de experimentação e diversas
possibilidades de efeitos (vivência de significado), proporcionadas pela
entrada em cena do leitor. Daí a importância da interpretação neste trabalho. O
conto “Missa do Galo” (Assis, 1982) pertence ao livro Páginas recolhidas,
lançado em agosto de 1899. O livro reúne grande parte das
melhores obras de Machado de Assis, tais
como “Idéias de canário”, “O velho senado”, “Caso da vara”, “Papéis velhos”,
entre outros. Embora agrupando peças literárias de tanto mérito, o livro obteve
apenas três resenhascríticas na época em que foi lançado, o que contrasta com o
grande sucesso junto ao público leitor, tendo sido esgotada a primeira edição de
dois mil exemplares em apenas quatro meses, o que serviu para legitimar ainda
mais o requinte e a popularidade do autor. As resenhas críticas em questão
foram profundamente positivas e elogiosas, ressaltando a genialidade do autor e
o distinguindo, mais uma vez, como um dos maiores ficcionistas do nosso país.
Freqüentemente o
sucesso de Machado de Assis é comparado ao de José de Alencar, pois ambos
puderam desfrutar, ainda em vida, dos louros proporcionados pela grandiosidade
de suas obras. Entretanto, nenhum outro autor, nem mesmo Alencar, gozou de
tantos aplausos, da unanimidade e do mérito de ser consagrado como o maior
escritor do país, sendo chamado de mestre por companheiros de trabalho com
nomes já consagrados, como por exemplo, Olavo Bilac. Por outro lado, cabe
ressaltar, Alencar experimentou maior popularidade por sua escrita de mais fácil
compreensão. Machado, grande estilista, obteve imensa glória frente aos
críticos por sua linguagem requintada e pleno domínio do nosso idioma.
Entre os elementos que
atestam a capacidade crítica do autor de “Missa do galo”, destacamos a
possibilidade de entendimento da sociedade contemporânea a Machado como sendo
hipócrita, condenando amores e desejos verdadeiros, mantendo casamentos
infelizes em nome de convenções e das boas aparências. Ressaltamos que a
leitura do texto dá margem para este tipo de interpretação, o que não significa
dizer que a literatura de Machado seja de denúncia. Desta maneira, o autor tem
a capacidade
de recriar, em seu texto, o espírito
crítico de sua época, sendo um grande mestre na arte da observação do ser
humano, de sua psicologia e na análise de seus movimentos e ações, tudo isso no
interior de sua ficção, que nos é apresentada com seu
inconfundível requinte estético. Leopoldo de Freitas (apud
Machado, 2003), em resenha sobre o livro Páginas recolhidas, exalta
a obra, trazendo à luz o fato de ser a literatura
de Machado sempre atual, não importando
em que momento ela seja lida, observando o clima de leitura ágil e envolvente.
Suavemente
descrevendo aspectos, personagens, caracteres, analisando situações,
colorindo as
cenas de algum quadro social e humano, desperta emoções
sem que a atenção sinta fadiga ou
dispense o mínimo esforço. (Machado, 2003: 220)
Leopoldo de Freitas foi
muito feliz em sua observação, expondo exatamente o que faz Machado em sua
narrativa econômica e ao mesmo tempo riquíssima: descreve suavemente, emprega
tintas de singeleza e agudeza ao mesmo tempo; é pungente e delicado ao traçar
as movimentações nas cenas, como se fosse um diretor de teatro que manipula
conscientemente os seus personagens em cena, e finalmente, suscita um
posicionamento do leitor, de modo que haja um processo de comunicação entre o
receptor e o texto, sem que este traga pronto dentro de si uma crítica qualquer.
Para o Leopoldo, “Missa do galo” é um conto digno de louvor, ocupando uma
posição de destaque dentro da obra magnífica de Machado, entre os contos de
imaginação, louvando também os aspectos humorísticos/sarcásticos empregados
pelo autor, em especial por saber atingir o ridículo e os defeitos do
comportamento humano. Como exemplificação das imperfeições humanas, podemos
citar a traição de Meneses, seguida da conivência de sua esposa, que aceita tal
comportamento do marido em nome das boas aparências. Temos, ainda, o consentimento
da
mãe de Conceição e as risadas irônicas
por parte das criadas, o que indica o conhecimento, por parte delas, da traição
do escrivão.
Páginas Recolhidas data
de 1899, e a história que nos é relatada no conto ocorreu há anos atrás do
tempo da enunciação, conforme anuncia o próprio narrador, Nogueira, que é um
memorialista. Ele revisita o passado para contar sua história, o que fica claro
pela expressão usada pelo narrador, “há muitos anos”, ao dizer da conversação
que tivera com certa senhora numa noite de Natal. Trata-se de uma narrativa que
quebra a expectativa de leitores mais ingênuos, uma vez que Machado não se
compromete com uma literatura redutora, com momentos de clímax, com um desfecho
clássico, tipicamente romântico (happy end ou final definido, seja ele trágico,
cômico ou de outro tipo qualquer), com as noções de antagonista e protagonista.
Machado, antes de tudo,
deixa os poucos acontecimentos dessa narrativa em sua potencialidade, em sua
não-resolução, para que o leitor implícito, comprometido
com os efeitos estéticos que o texto possa nele provocar, vá formando seus
próprios correlatos de sentença, que são fenômenos da percepção. O leitor vai
preenchendo os pontos de indeterminação, sendo, desta forma, capaz de construir
um sentido para a obra, fazendo com que essa interação com o texto resulte em
tomada de consciência de sua inserção em sociedade. Isso não significa,
contudo, que, no texto, já se encontra um sentido fechado, tal como pretendia
certa crítica marxista. Pelo contrário, é justamente porque o leitor se depara
com a ausênciade uma resolução de visões de mundo diferenciadas e não
resolvidas que o leitor se vê impulsionado a pensar sua inserção social, face a
tal vazio.
Vemos que, diante do
exposto, a dicotomia sujeito/sociedade não mais existe, uma vez que tais
conceitos são indissociáveis. O discurso ficcional da literatura, segundo Iser,
se apropria das referencialidades, não para endossá-las, mas para colocá-las em
questão. Isto é feito através de diferentes visões de mundo que se encontram em
embates, em conflitos que não se resolvem. O discurso ficcional reorganiza
horizontalmente as normas e os valores sociais,
como descreve Iser. Daí a explicação do motivo por que não faz sentido a
separação ficção versus realidade.
Tal interação entre
pólo estético e pólo artístico66 é sempre tensa e
conflituosa, daí a capacidade de autoconhecimento por parte do leitor, comprometido
com a leitura. O resultado é a experiência estética ou, o que é o mesmo, a
vivência de significado que se transforma em significação, por parte do leitor,
sobre as normas do seu contexto pragmático, ou seja, a sua própria
referencialidade. Atribuímos, então, um caráter de funcionalidade à literatura.
Logo no início do conto
o leitor se depara com a seguinte informação: “Nunca pude entender uma
conversação que tive com uma senhora, há muito anos, contava eu dezessete, ela
trinta”. Observa-se, primeiramente, a diferença de tempo que separa o que está
para ser relatado em relação ao momento em que a história está sendo contada,
ou seja, a diferença entre o tempo do enunciado e o da enunciação. Trata-se de
um exercício de memória do personagem-narrador, Nogueira, o que já atribui por
si um caráter ficcional ao que está sendo relatado, aliado à questão da desconfiança
em dobro que devemos ter em relação a esse enunciador.
Essa primeira frase
aponta ainda para a diferença de idade entre Nogueira e Conceição, figura
feminina em torna da qual gira o conto. O narrador não é explícito quanto a
essa diferença de idade questionada pelos códigos sociais, aspecto proibitivo
de uma possível relação que poderia ter havido entre os dois. Trata-se de uma
escolha estilística do autor, que ao mesmo tempo em que suaviza essa questão,
deixando a informação implícita, revela, sub-repticiamente, tal diferença, com
dose certa de ironia e crítica às convenções de sua época. Além disso, não
sendo explícito, ele atrai mais fortemente o olhar do receptor para essa
questão da diferença de idade entre os dois.
Ao lermos o conto “Missa
do galo”, recebemos seus sentidos e também sua “falta de sentido”, a qual vamos
preenchendo, durante o próprio processo da leitura, em pleno ato de recepção
textual. Tais são os vazios que se formam durante a interação do leitor, o pólo
estético, com o texto, o pólo artístico, entre as diversas perspectivas do
texto – as de enredo, personagem, leitor fictício, narrador. Os espaços vazios,
durante o ato de leitura, tornam-se obra literária, dotada de significação pelo
leitor, ou seja, a literatura se configuraria como condição de possibilidade para
que o leitor construa uma significação.
Nogueira – narrador do conto e,
portanto, detentor do poder, lugar de onde o discurso é proferido –, está
hospedado na casa do escrivão Meneses, na época do Natal, a fim de assistir à
Missa do galo na Corte.
A família limita-se ao próprio escrivão, sua mulher Conceição, a mãe desta, Dona Inácia, sendo que, na casa, vivem também duas escravas. Logo no início do conto o narrador nos relata o fato de Meneses trair sua esposa, mas seu discurso é construído de maneira elaborada, e eufemisticamente, como diz o próprio enunciador, uma vez que as traições se dão quando Meneses diz à mulher que vai ao “teatro” – local de representação, que se une à própria representação do marido e à da esposa, que permanece quieta.
A família limita-se ao próprio escrivão, sua mulher Conceição, a mãe desta, Dona Inácia, sendo que, na casa, vivem também duas escravas. Logo no início do conto o narrador nos relata o fato de Meneses trair sua esposa, mas seu discurso é construído de maneira elaborada, e eufemisticamente, como diz o próprio enunciador, uma vez que as traições se dão quando Meneses diz à mulher que vai ao “teatro” – local de representação, que se une à própria representação do marido e à da esposa, que permanece quieta.
Assim, tanto o teatro
como essa casa são locais de encenação, respaldadas pelo
consentimento de uma sociedade fingida. A princípio, Dona
Conceição é apresentada como “boa”, “santa”, de comportamento e temperamento “moderados”,
“sem extremos”, ou seja, uma típica figura feminina da sociedade patriarcal
brasileira do século XIX. De acordo com o que relata o narrador, a maior
prioridade de Conceição era manter as aparências: “aceitaria um harém, com as
aparências salvas”. Porém, a essa imagem de mulher mediana, “nem bonita nem
feia”, apenas simpática, interpôs-se a imagem de uma mulher “linda, lindíssima”,
na noite de Natal em que Nogueira esperava um amigo à meia noite, para que os
dois fossem assistir à missa do galo.
Enquanto esperava,
Nogueira entreteve-se com a leitura d’Os três mosqueteiros, romance romântico,
cheio de aventuras. O narrador desperta da leitura do romance para viver sua
própria aventura naquela noite. De tão comprometido com sua leitura, ele
percebe que os “minutos voavam”, ao contrário do que costumam ser quando são de
espera. No entanto, ao bater onze horas, um pequeno ruído despertou a atenção
de Nogueira, e, em seguida, uns passos no corredor. Tratava-se da figura de Dona
Conceição, à porta da sala. O que se segue é um longo diálogo de palavras
murmuradas e sussurradas, um jogo de sedução entre os dois personagens que faz
com que o leitor comece a fazer projeções a respeito do que possa acontecer
naquela sala, projeções que serão retificadas ou ratificadas ao longo da
narrativa. Nogueira pergunta se, por acaso, acordou Conceição, ao que ela responde
“acordei por acordar”. Esse enunciado provoca desconfiança tanto no leitor
quanto no narrador-personagem, já que este, ao fitá-la,
percebe que seus olhos eram de pessoa
que nem havia pegado no sono. Verificamos, desde já, um movimento de interesse,
por parte de Dona Conceição, e de ambigüidade, pois podemos pensar que ela não
havia dormido para esperar o momento propício à sua aparição – momento em que
se encontraria a sós com o rapaz. Ou, por outro lado, podemos também pensar que
o suposto despertar de Conceição coincide com o próprio despertar da
sexualidade do rapaz.
Ao mesmo tempo em que
Nogueira estava lendo um romance romântico, a visão de Conceição lhe parece
também romântica. As imagens que esse discurso nos traz são todas ligadas entre
si, já que, em seguida, o diálogo inicial dos dois aborda justamente o tema de
romances. Num jogo sedutor entre os dois, pelo o que Nogueira nos passa, Conceição
inclina a cabeça, olha-o com os olhos meio cerrados, umedece os lábios, e em
seguida, há um silêncio, sinal de possível desconforto e intimidade entre os
dois. Todos os movimento seguintes de Conceição são feitos sem que
ela desvie seu olhar de Nogueira, quase hipnotizando-o. A
criação da figura feminina feita por Machado de Assis é riquíssima em aspectos
psicológicos, como, aliás, costumam ser suas personagens.
São donas de intenso
magnetismo pessoal e poder de sedução. Conceição, ao contrário do que demonstra
ser no início do conto (provavelmente sentindo-se emparedada por convenções da
época), não é “santa” ou indefesa. Ela, antes, representa esse papel de esposa
condescendente e resignada, mas possui dentro de si desejos e vontades
naturais, como toda mulher, e ousou insinuá-los. Prova de que não se trata de
uma “santa”, além de sua ousadia, em certa passagem da conversação entre ela e
Nogueira, em que, não obstante afirmar que preferia duas santas às estampas que
figuravam na parede de sua sala, revela “compreender” perfeitamente as
preferências masculinas por quadros de apelo erótico:
— Estes quadros estão ficando velhos. Já
pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o
marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava
"Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro,
mas eram
mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
— São bonitos,
disse eu.
— Bonitos são;
mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia
duas imagens,
duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de
barbeiro.
— De barbeiro? A
senhora nunca foi a casa de barbeiro.
— Mas imagino que
os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e
namoros, e
naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas.
Em casa de
família é que não acho próprio. É o que eu penso, mas eu penso muita cousa assim esquisita.
Conceição podia nunca ter entrado em uma casa de barbeiro, mas possuía imaginação ativa o suficiente para dizer com tamanha ênfase sobre saber o que se passa em seu interior. Podia ser que as imagens de mulheres não lhe agradassem, mas geravam, em contrapartida, pensamentos tortuosos para uma senhora casada em pleno século XIX, inserida no seio de uma sociedade patriarcal e hipócrita. Ainda no final do diálogo transcrito acima, temos a insinuação de Dona Conceição: “mas eu penso muita cousa assim esquisita”, deixando transparecer que este não é seu único pensamento ousado, que, por trás deste inicial, há outros, possivelmente indizíveis naquele tempo. Por outro lado, Conceição externa seus pensamentos através de sua movimentação insinuante e do desejo de prolongar o encontro com o rapaz.
A cada tentativa de interrupção do
momento a sós, por parte de Nogueira, Conceição faz de tudo para mantê-lo por
perto, ao dizer que ainda não são horas,
já que acabara de olhar o relógio, para, em seguida, tratar de mudar de assunto
e, desta forma, recomeçar o efeito de cumplicidade e estender o encontro entre
os dois. Ela diz que está ficando velha, provavelmente em tom provocativo, pois
sabemos que agrada muito às mulheres receber elogios, o que suscita a seguinte
reação de Nogueira, em total tom de intimidade e admiração: “Que velha o que,
D. Conceição?”.
Diante desta observação
de Nogueira, Conceição levanta-se e começa a andar pela sala, num balanço
singular, recomeçando seu jogo sedutor. Conforme José Veríssimo, na resenha já
citada anteriormente, oautor de Dom Casmurro é capaz de recriar o ambiente de
sua época,
Com as suas poderosas faculdades de
observação e análise, e todas as suas
qualidades de estilo, de representação,
de resumir em uma frase curta, em
uma breve sentença, uma impressão, uma
situação de espírito ou um estado
d’alma, ninguém como ele poderia dar-nos
o quadro da sua época. (Machado,
2003: 218)
Por
vezes, Conceição pede que Nogueira fale mais baixo, pois sua mãe pode acordar.
Trata-se, mais uma vez, de um discurso ambíguo por parte de Conceição. Talvez
ela não queira que a mãe acorde para não atrapalhar seu encontro com Nogueira,
ou pode ser que tal desejo se deva ao fato de não querer incomodar a própria
mãe. Trata-se de um vazio, que fica no ar, potencialmente, que as perspectivas
do texto não resolvem, cabendo ao leitor comprometido formular sua própria
resposta. Assim, o sentido do texto é visto como construção, em vez de
revelação de verdades pré-existentes. Não existe um enunciado isoladamente,
neutro ou independente, mas sempre fazendo parte de uma série ou de um conjunto
de enunciados. Desta forma, tudo o que o narrador e os personagens enunciam
está intimamente ligado: um formula uma “pergunta”, que, logo em seguida, vai
corresponder ao movimento do outro.
A
materialidade do discurso faz com que ele passe a emergir enquanto objeto,
articulador de imagens que são propostas no campo sintagmático do texto
literário, que provocam em nós, leitores, diversas e diferenciadas reações de
percepção diante do objeto literário que temos em mãos, pois cada leitor pode
reagir diferentemente a um mesmo texto, levando em consideração os fatores
realmente manifestos, extrateóricos, ou seja, sua própria experiência de vida,
a sua referencialidade, e ainda, sua inserção em sociedade. Desta forma, o
leitor está também sujeito aos efeitos históricos, identificando-se ou
identificando certos elementos no texto, para que a experiência da alteridade,
para que esse processo de comunicação, resulte em um despertar de consciências
por parte dos leitores.
Se
antes Conceição não era bonita nem feia e, logo após, torna-se“linda,
lindíssima”, ao final do conto, no dia seguinte à missa do galo, ela voltará a
ser sóbria e “santa”, nada que lembrasse a senhora da conversação da véspera.
Fica em suspensão o desejo de comprovação do que havia de fato ocorrido naquela
sala. Mas tal idéia é apenas sugerida, porque essas respostas não nos são
fornecidas. O leitor deve assumir a posição de um cético, que prefere sempre
manter a dúvida para poder continuar investigando, pensando. O desejo de
conhecer respostas deve permanecer como tal: uma meta apenas desejável,
distante, por isso mesmo inatingível, o que implica afastamento. Uma vez
devorado, o desejo é aniquilado. Neste caso, desapareceria então a dúvida e a
continuidade de investigação, a ânsia do saber. No entanto, em “Missa do galo”,
permanece na mente do narrador tal dúvida, e principalmente, marcada aquela
experiência no rapaz para a vida toda, assim como em nós, receptores do texto machadiano,
conservam-se todas as experiências estéticas provocadas pelo discurso do
narrador e pelas imagens imanentes da ficção de Machado.
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Por:
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