Literatura
ou jornalismo? Ou literatura e jornalismo? O lançamento das crônicas de Machado
de Assis em livro – assunto que rendeu inclusive um artigo da professora Ana
Flavia Cernic Ramos na edição de maio de 2011 da Revista de História - traz
novamente essas perguntas à tona: o que seria esse gênero híbrido que trafega
entre a ficção e a não-ficção? “A crônica é um tipo de produção que é ao mesmo
tempo literária e tem um protocolo característico em relação com os
acontecimentos do momento”, opina o professor Sidney Chalhoub, da Unicamp, que
está no projeto de relançamento das crônicas machadianas desde o seu início.
Chalhoub, que toca diretamente as edições da série “A+B” e “Gazeta de Holanda”,
lembrando a importância cultural do jornal no século XIX como o lugar onde a
literatura brasileira acontecia. Somente após passar pelos diários é que os
folhetins e contos seguiam para o livro, no formato de romance ou coletânea de
contos.
Óleo sobre tela de Henrique Bernardelli retratando Machado de Assis, 1905
O
professor de História da PUC-Rio Leonardo Pereira, que organizou a série
machadiana “História de quinze dias”, também acha que a crônica, “como qualquer
gênero literário”, não se presta a definições muito fáceis.
“Sua principal característica foi a ligação com os temas em debate no momento da escrita”, escreveu ele, para quem o formato se consolidou no Brasil entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX. “Ligadas ao jornal, dentro do qual surgiram e se desenvolveram, as crônicas guardam a vocação do diálogo direto com as questões do tempo – ainda que não se confunda em nenhum momento com a simples reportagem, dado o caráter inventivo que elas assumiram na produção dos nossos principais cronistas.”
A produção de bons cronistas no Brasil no século XX, segundo sugeriu a professora de literatura brasileira Unesp Lúcia Granja – que ficou com os “Comentários da Semana”, junto de Jefferson Cano – se deveu a uma questão mercadológica. Os escritores continuaram vinculados aos jornais porque o nosso mercado editorial não se desenvolveu como em outros países.
“Como
os escritores não abandonaram o jornal, eles criaram formatos novos para a
crônica. O leitor do século XIX tinha a expectativa que esse espaço fosse
literário. No século XX, os escritores tiveram que desenvolver a crônica. Até
chegarem na poética do instantâneo, como dizia Antônio Cândido”, contou a
professora, fazendo coro com o professor Chalhoub, que também vê uma produção
forte brasileira em crônicas no século XX, diferentemente de outros países,
tendo chegado até os dias de hoje com escritores como Luis Fernando Verissimo.
“O autor presta o testemunho da história do tempo que se desenvolve. Assim como o escritor, que cria um autor, que faz um comentário, mas um comentário jornalístico. A crônica é um gênero híbrido, a interseção entre jornalismo e literatura.”
Joaquim
Maria Machado de Assis foi jornalista antes de ser funcionário público, tendo
trabalhado no “Diário do Rio de Janeiro”, a partir de 1860, como conta o
professor de Literatura brasileira da Unicamp Jefferson Cano. Foi lá que o
futuro autor de “Memórias póstumas de Brás Cubas” começou a se exercitar como
cronista, assinando os “Comentários da Semana”, entre 1861 e 62, quando ele tinha
22 anos.
“Acho
que esse período pode ser visto como um aprendizado do grande ficcionista que
só vai entrar em cena mais tarde. Nesse período, a crônica não é a única
inserção de Machado na literatura (ele também faz crítica teatral e escreve
algumas peças de teatro); mas o trabalho de cronista é o mais constante”,
escreveu Cano, afirmando que as mais de 600 crônicas dos quase 40 anos de
atividade são as partes menos conhecida de seu trabalho.
Para
ele, há duas características marcantes desde o início nas crônicas machadianas,
que vão se fortalecendo ao longo de sua produção: a busca de uma voz
estilística e o engajamento político. “Talvez possamos dizer que o
amadurecimento do escritor, a elaboração do estilo literário faz também com que
o comentário político se torne menos direto, menos jornalístico e mais enredado
na própria construção do texto, na maneira como se constrói um personagem, no
recurso à ironia. E isso tanto na crônica quanto na ficção, até o seu último
livro, ‘Memorial de Aires’.”
A
crônica não era um laboratório para se usar os resultados em outros formatos,
opina a professora Lúcia Granja. Ela cita as “Notas semanais” (1878), que ela
editou ao lado de John Gledson, como a demonstração de que as inovações
narrativas de “Memórias póstumas...”, publicado em livro em 1881, já estavam,
de certa forma, apontadas nessas crônicas e nos contos reunidos em “Papéis
avulsos”. Na recente edição deste livro, publicada agora em 2011, Gledson
escreve no prefácio que “há uma linha de especulação e de experimentação na
ficção, também concentrada nos últimos anos de 1870 (...). Esse material
divide-se em dois: um conjunto estranho de nove itens (...); e catorze
crônicas, chamadas ‘Notas semanais’, das mais interessantes que escreveu.”
Um
dos recursos desenvolvidos por Machado foi a criação de personagens que
assinavam suas crônicas, como é o caso de Lélio, pseudônimo que assinava as
“Balas de estalo”, objeto do artigo publicado na RHBN de maio de 2011, ou
Manassés, responsável pela “História de quinze dias”, a primeira experiência
nesse sentido.
Fonte:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/reportagem/cronicamente-viavel
Por:
Queli Pereira
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