segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Trabalhando Machado de Assis em sala de aula



Para muitos professores, pode parecer impossível trabalhar nessa faixa etária os textos de Machado - considerados difíceis e muito refinados. Sem contar os enredos, antigos demais para agradar aos pequenos e jovens leitores. Um engano. A obra machadiana é extensa e inclui uma série de contos perfeitamente compreensíveis do 3º ano em diante, além de romances saborosos, com uma linguagem bem dinâmica, rica em ironia e que prende a atenção das classes do 6º ao 9º ano. "Autores como ele têm um papel muito importante na formação de leitores literários e devem ser apresentados desde os primeiros anos do Ensino Fundamental", garante João Luís Ceccantini, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
É por meio dos clássicos, como é o caso dos livros de Machado de Assis, que crianças e adolescentes passam a compartilhar referenciais lingüísticos, artísticos e culturais que permitem a eles estabelecer vínculos com as gerações anteriores e se integrar à cultura. Clássicos, como definiu o escritor italiano Italo Calvino, "são aqueles livros que chegaram até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)".

A qualidade da narrativa, a complexidade com que conf litos são nela expostos, a força das idéias que transmitem e os questionamentos que suscitam dão esse status a muitos dos escritos de Machado. O autor se destaca ainda por conseguir unir o erudito ao popular de forma única. Ele revolucionou a cultura nacional. Mulato, gago e epilético, em pleno período escravocrata, se tornou admirado e respeitado nos mais nobres salões da corte, contando histórias que ajudaram a moldar a noção que temos do que é ser brasileiro (leia mais sobre ele no quadro da página ao lado). Se atualmente é visto como um escritor erudito, um medalhão inalcançável, em sua época Machado era popular. Ao ser lidos desde cedo, os clássicos são absorvidos de uma maneira muito especial porque "a juventude comunica ao ato de ler como a qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares", definiu Calvino. E este é o papel da escola: possibilitar o acesso à ficção de qualidade de forma prazerosa.

Os estudantes se encantam pelo amor que o mestre sente pelas histórias e isso ajuda a mostrar que a leitura não é uma atividade mecânica. Muito pelo contrário. "A participação do leitor na construção do sentido do que está escrito é fundamental", ressalta Heloisa. Para Helena Weisz, especialista em Língua Portuguesa e Literatura, de São Paulo, o bom autor sempre deixa fios soltos. "Cabe ao leitor uni-los, fazendo perguntas e criando respostas." A função do professor é dar meios para que essas pistas sejam descobertas e, com elas, surjam os significados.

Na literatura, tão importante quanto o que se diz é o como se diz. E na clássica essa característica é ainda mais latente. "Em arte, forma é conteúdo. Por isso, é preciso ressaltar a contribuição dos aspectos formais do texto", explica Helena. Dentre eles estão o uso figurado das palavras, o ritmo, as seqüências por oposição e simetria, as repetições de palavras e sons. "Outros elementos que podem ser fundamentais para desvendar o texto são o narrador, a caracterização dos personagens, o tempo, o espaço e o tipo de discurso", completa. Quando esses aspectos da história são destacados, a garotada passa a construir um sentido e a criar hipóteses interpretativas, que precisam ser ampliadas, confirmadas ou refutadas.

É bom ficar atento, no entanto, a uma armadilha: em alguns livros didáticos, a literatura continua sendo usada como um pretexto para o ensino da língua, o que afasta qualquer um dos clássicos. "Os objetivos desse tipo de leitura não devem estar atrelados ao ensino de gramática, mas aos procedimentos de análise literária, do reconhecimento da complexidade de uma publicação e da relação entre o mundo das letras e a sociedade", destaca Heloisa Ramos. Outra estratégia ineficaz é pedir a leitura de um título específico e depois aplicar um teste. "Tentar criar o gosto pelos livros por meio de um sistema de forçar a ler só para fazer uma prova é uma maneira infalível de despertar o horror nos estudantes", defende a escritora Ana Maria Machado.

Outro ponto importante: o educador necessita de muita preparação. Isso inclui reler o livro antes de indicá-lo - mesmo se já o fez outras vezes durante a vida -, conhecer como era a história do país na época em que foi escrito e descobrir aspectos da biografia do autor que possam gerar discussão. Nas palestras e exposições em homenagem ao centenário da morte de Machado de Assis, é possível se abastecer de informações.
A internet também é uma aliada nessa missão. A Academia Brasileira de Letras, por exemplo, construiu uma página recheada de histórias e dados sobre o escritor e sua obra

A partir do 6º ano, é possível fazer uma transição, com contos mais densos (leia a indicação de dois deles no quadro à esquerda). No 7º, é viável começar a trabalhar com as grandes histórias de Machado. Um dos títulos que se encaixa bem nessa faixa etária é Dom Casmurro (confira uma seqüência didática sobre o romance no quadro da página ao lado). O enredo gira em torno de Bentinho, um jovem aristocrata carioca, que desconfia que a mulher, Capitu, cometeu adultério.

O escritor faz um jogo lingüístico interessante e deixa no ar a dúvida: ela traiu ou não? Na EMEF Professor José Negri, em Sertãozinho, a 305 quilômetros de São Paulo, a questão embalou a discussão na 8ª série. A professora de Língua Portuguesa Sueli Savegnano começou abordando a biografia de Machado.

Para propor a leitura de Dom Casmurro, ela criou uma expectativa contando pontos do enredo e explicando como a ambigüidade sobre o comportamento de Capitu se transformou numa das questões mais debatidas no meio literário nacional. "A turma não via a hora de começar o livro." Ela destacou os recursos lingüísticos utilizados pelo autor para deixar a suspeita no ar. Primeiro, leu trechos que mostravam o ciúme de Bentinho e as desconfianças que ele tinha em relação à mulher. Depois analisou as falas de personagens secundários, como as insinuações de José Dias e as reticências de Justina. Por fim, destacou as passagens que mostravam o ponto de vista de Capitu.

Então, uma grande discussão em aula foi armada. Cada um tinha de contar um pouco do que tinha entendido e adotar uma posição: Capitu traiu ou não? Para defender a "sentença", era necessário dar exemplos. "Alguns se exaltavam e sustentavam sua teoria com muito furor", lembra Sueli. As hipóteses interpretativas foram debatidas e chegou-se a um entendimento: Capitu é inocente. Machado queria que os leitores se indagassem sobre as possíveis interpretações da verdade e levar a sociedade da época a refletir sobre como as fofocas podem prejudicar uma pessoa.

As leituras na juventude tendem a ser pouco profundas por causa da impaciência, da distração e da inexperiência do leitor. Mas elas têm outro lado, riquíssimo. "Podem ser formativas, no sentido de dar forma às experiências futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza - coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude", escreveu Italo Calvino. Em suma, quando se tem contato com as narrativas clássicas desde cedo, os encontros futuros com as grandes obras da literatura tendem a ser ainda mais transformadores. A escola que ignora essa experiência não cumpre bem seu papel.


Para 6º a 9º ano

Em O Caso da Vara - um dos textos presentes em Contos -, Damião é um jovem seminarista que não suporta a idéia da carreira eclesiástica, que o pai quer obrigá-lo a seguir. O conto serve de base para uma discussão sobre relações familiares e de poder e inspira a análise das características do texto argumentativo e dos articuladores do discurso.


O conto O Enfermeiro narra a história de Procópio, um homem que cuida de um velho coronel doente que o maltrata. Um dia, ele se descontrola e estrangula o patrão. O texto - presente no livro Várias Histórias - serve de mote para uma análise sobre a relação entre literatura e sociedade.


Por:Suzana Correia Lemos 

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