(IV) Da epístola a Quintino Bocaiúva,
enviando-lhe alguns exemplares de umas comédias suas para avaliação, é
interessante que citemos os trechos mais citados:
Se a minha afirmação não envolve
suspeitas de vaidade disfarçada e mal cabida, declaro que nenhuma outra
ambição levo nesses trabalhos. Tenho o teatro por coisa muito séria e
as minhas forças por coisa muito insuficiente; penso que as qualidades
necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com o tempo e
o trabalho; cuido que é melhor tatear para achar; é o que procurei e
procuro fazer.
Caminhar destes simples grupos de
cenas – à comedia de maior alcance, onde o estudo dos caracteres seja
consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se case ao
conhecimento prático das condições do gênero, – eis uma ambição própria
de ânimo juvenil e que eu tenho a imodéstia de confessar.
E tão certo estou da magnitude da
conquista, que me não dissimulo o longo estádio que há de percorrer
para alcançá-la. E mais. Tão difícil me parece este gênero literário
que, sob as dificuldades aparentes, se me afigura que outras haverá,
menos superáveis e tão sutis, que ainda as não posso ver.
Até onde vai a ilusão dos meus desejos? Confio demasiado na minha perseverança.
Que Machado achava o teatro uma “coisa
muito séria”, e que ele estava tateando em sua composição, nós
percebemos tanto pelo fato dele ter escrito apenas fagulhas quanto pelo
fato de ter traduzido, além de Racine, Beaumarchais, Eugène Sue (cuja
tradução rendeu um libreto de ópera, Pipe-let, traduzido por Machado e
musicalizado por Ermanno Wolf-Ferrari; Machado também seguiu a mesma
linha, adaptando Amedée Achard e Luis de Olona), Theodore Barrière e
Edouard Plouviere, Víctorien Sardou, Gustave Vattier e Émile de Najac
(na verdade, uma imitação de “Le chasse au lion” que gerou a peça “Hoje
avental, amanhã luva”), Alexandre Dumas Filho e Émile de Girardin,
Octave Feuillet, e manuscritos de peças de Dumanoir, Clairville e J.
Cordier, e Léon Gozlan – mas infelizmente, a grande maioria destas
traduções está perdida…
Agora, à resposta de Quintino Bocaiúva:
Como lhes falta a ideia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São valiosas, como artefatos literários, mas até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma.Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me diriges, devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre a rampa da cena do que há em oferecê-las à leitura calma e refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo à apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comédias são para serem lidas e não representadas. Como elas são um brinco de espírito podem distrair o espírito. Como não têm coração não podem pretender sensibilizar a ninguém. Tu mesmo assim as consideras, e reconhecer isso, é dar prova de bom critério consigo mesmo, qualidade rara de encontrar-se entre os autores.O que desejo, o que te peço, é que apresentes nesse mesmo gênero algum trabalho mais sério, mais novo, mais original e mais completo. Já fizeste esboços, atira-te à grande pintura.
Onde observamos a lucidez com Bocaiúva
aconselha Machado e a lucidez ainda maior com que Machado relega a
segundo plano um gênero em que não se contentava e onde não se
engrandecia, pondo em primeiro plano a prosa e constituindo um
monumento literário inalcançável e incomparável em nosso país.
Mas até que ponto o teatro machadiano deve ser assim tão relegado como ele é?
O teatro machadiano possui uma notória
evolução ao longo de sua existência, conforme observamos que sua
primeira peça, composta apenas de três personagens, é realmente
perecível… Mas peças de sua maturidade, como “Não consultes médico” e
“Lição de botânica”, quando Machado já havia entrado em sua fase
realista, possuem um logro e um sucesso mais genuínos, como observamos
na personagem de D. Leocádia de “Não consultes médico” que é dona de um
humor genuíno e cativante, ao contrário de todas as outras tentativas
de Machado ao incorrer naquela forma de humor. Não apenas isto, mas
“Lição de botânica” possui um sabor molieresco que teria revelado uma
forma de drama bem maior se o autor tivesse levado a peça mais a sério.
Oras: levar a peça mais a sério? A
impressão que temos é a de que Machado não se preocupava em insuflar um
grande gênio em seu teatro, conforme deixa claro no prefácio de “Os
Deuses de Casaca” ao chamar sua peça de “despretensiosa”. Mesmo que a
ironia machadiana estivesse gotejando naquelas peças de sua maturidade,
gotas não fazem um escarcéu conforme nós percebemos em cada linha de
“Dom Casmurro” ou de “Brás Cubas”. O seu procedimento básico de
escrita, exposto no prefácio de “Ressurreição” (1872), parece denunciar
também o seu proceder e querer quando escrevendo peças de teatro (dado
que a primeira vem de 1860, 12 anos antes do primeiro romance):
Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro.
Se o jovem Machado, como escrevera a
Bocaiúva, estava tateando, porque persistiu em tatear até o fim de sua
vida? Pretendia mais cedo ou mais tarde acertar? Parece um tanto quanto
ilógico observarmos a figura séria de um mestre relojoeiro como Machado
de Assis dependendo de um artifício da sorte para alcançar algum êxito;
mesmo que suas duas últimas peças demonstrem um inegável acerto de
composição, ainda assim não é um acerto suficiente o bastante para que
a peça consiga girar suas engrenagens com facilidade para o teatro, no
que apenas uma montagem excelente conseguiria transformar um teatro
deficiente como o de Machado numa peça minimamente aceitável
teatralmente.
As razões para tal são os movimentos
interiores das personagens, que perscrutam a si próprias mais do que
interagem com as outras e, quando interagem, dão uma sensação estática
irrepreensível de que estão em cúpulas e se comunicando com muito
esforço. Em “Os Deuses de Casaca” não temos sentimentos interiores, mas
apenas estremecimentos que, mesmo que sejam realmente notáveis, como o
verso “Marte, sinto… não sei”, de Apolo, são insuficientes para que
elas possam demonstrar que são vidas ou que há alguma coisa se mexendo
e se movimentando de forma análoga à realidade na frente do espectador.
Quando Machado cria um bom personagem, como D. Leocádia ou Camões, um
personagem por si só não é o suficiente para que uma peça gire, nem
mesmo num drama monológico, pois nestes o que nós temos é um personagem
que representa uma plêiade de outros (resquícios do corifeu)…
Assim, se nos romances Machado
conseguiu evoluir com destreza suas tendências artísticas de perscrutar
a alma humana, Machado não a conseguiu com a habilidade de Shakespeare
ou Racine que punham as personagens em contato com outras para
revelarem e esconderem seu interior, como Fedra diante de Hipólito ou
Hamlet diante de Gertrudes, ou até mesmo Hamlet diante de si mesmo com
resquícios da usurpação de Claudius ou da traição de Gertrudes (etc),
mas sim que Machado cria personagens que perscrutam a si mesmas e
possuem um egocentrismo que seriam elevados ao máximo em “Dom
Casmurro”, com a casmurrice necessária para que Bentinho, de forma
proustiana, analisasse sua história e buscasse compreender a grande
Esfinge que é Capitu, esta maravilhosa personagem que lança seu olhar e
seus resquícios em toda a produção machadiana, do eu lírico de um
soneto a uma personagem teatral sua, que possui a infelicidade e, antes
de mais nada, a obrigatoriedade de expor suas entranhas, como Dido
observa as entranhas de uma rês durante uma hecatombe (IV, 64):
(…) inhians spirantia consulit exta.Mas que, também e fundamentalmente, está olhando para si mesma… Como David olhando a Sibila de Cuma, profeta da vinda de Cristo assim como o acima citado Virgílio.
Jogo de espelhos, jogo de corifeus, a
introspecção das personagens machadianas não consegue transcender a
“Viagem à roda de mim mesmo” (o título de um excelente conto de
Machado) e alcançar aquela área que não só comunica com o outro numa
constante dialética, mas que também deixa claro que tal dialética foi
comunicada e é capaz de deixar registros visíveis e nítidos de que a
relação ocorreu (não sempre visíveis para as personagens do drama, mas
necessariamente para o leitor), sem que para isto a personagem
necessite de mais introspecção para encontrar a si mesma ou ao outro ou
ao resquício do outro. Neste sentido, quando Machado encontra a fonte
básica de seu teatro, da vertente dos dramas de casaca, ele consegue,
ainda que não uma peça teatral bem acabada e “para a encenação”, ao
menos uma nascente, da mesma forma como quando cria uma peça para a
leitura ou para a declamação está encontrando uma forma de se fazer
teatro que atendia às suas necessidades e ao seu alcance interior e
também exterior, dado que os saraus literários ainda eram
representações mais típica e efetivamente burguesas da época: assim, se
a ribalta não é o meio ideal para que as peças machadianas sejam
inseridas, talvez seja interessante que a crítica comece a considerar
melhor a ideia de que as peças machadianas nunca pretenderam de fato a
ribalta, mas sim aquele contato próximo (e mais efetivo) com a
burguesia e com os cafés literários e intelectuais que o Rio de Janeiro
pintalgava, ostentando uma forma de ironia que se localiza abaixo do
nível geral artístico machadiano, mas que consegue demonstrar
perfeitamente que, mais uma vez, Machado poderia ter sido um gênio
literário de grandeza maior em qualquer coisa que decidisse querer.
Sobre o autor: Matheus “Mavericco”,
nascido em 1992, Goiânia, gosta de literatura clássica em suas várias
acepções, mas em especial daquela forma de arte que consiga contar uma
boa história, fruto de uma boa reflexão, numa boa linguagem e com uma
boa construção e coesão interna e externa: e que consiga, sendo assim,
ser imorredoura até que o coração pare ou atrofie. Não é formado em
nada e não está cursando nada; é um vestibulando e um concursando; é um
apaixonado; é um leitor.
Fonte: http://www.posfacio.com.br/2012/04/15/duas-pecas-de-machado-de-assis-parte-final/
Por: Priscila de Sá Braga Fonseca
Nenhum comentário:
Postar um comentário